O protagonista e a leitora: quase um conto de fadas
Ela é bem jovem ainda, mas já conhece bastante do mundo. Desde pequena almeja ter uma vida melhor, está cansada de ver sua mãe se arrastar do subúrbio para o centro em uma viagem que quase chega a duas horas, principalmente nas segundas e sextas-feiras. A mãe a aconselha a estudar, única saída para quem não nasceu sob uma régia estrela.
A estudante tem um grande amor pelo conhecimento, não é um fardo, portanto, ter tantas matérias para revisar. É bom também para passar o tempo, uma vez que passa os dias sozinha, esperando a noite chegar para conversar com uma mãe sonolenta.
Hoje, a jovem está ansiosa. Pela manhã, ao visitar a biblioteca da escola, ofereceu-se para ajudar a bibliotecária a arrumar os livros nas parteleiras e organizá-los em ordem alfabética. Não foi um trabalho difícil, pois o acervo não é grande. Com a chegada dos livros novos enviados pela secretaria de educação, muitos livros antiquíssimos tiveram que ceder seus lugares:
- Esses não coloque na estante porque vão direto para o lixo. Só ficaram por tanto tempo porque não tínhamos outros para ocupar o espaço.
-Posso vê-los? - ela perguntou curiosa.
- Você não vai querê-los. Só de encostar neles tenho sintomas de rinite - a bibliotecária disse.
- Quem sabe tem algo interessante.
- Duvido.
A garota analisou a pilha de livros, realmente quase nada se aproveitava. Mas um livro marrom sem título na capa era o único de aspecto melhor. Pediu a bibliotecária e o levou para casa. Ainda no ônibus começou a lê-lo. Era uma história sobre um valente cavalheiro medieval, que enfrentou mais de dez homens para proteger sua aldeia.
Ela adormeceu sobre o livro, quando sua mãe chegou não teve coragem de acordá-la. Levantou-se apressada, a noite toda sonhou com o protagonista da história do livro velho. Quase perdeu o ponto porque há muito tempo que uma narrativa não prendia tanto sua atenção e um personagem cativava tanto seu carinho.
Mal prestou atenção às aulas, estava agradecida pelo livro ser tão grosso, se não já haveria o terminado. A cada página o personagem Sir William mostrava-se mais heroico, mais nobre, ela torcia para que ele conseguisse recuperar seu lugar de príncipe. Um primo déspota usurpou o trono quando o legítimo rei morreu em uma batalha. William, ainda criança, foi levado às pressas para uma aldeia distante, lá foi treinado e preparado para recuperar seu lugar de direito e livrar seu povo da miséria perpretada pelo injusto rei.
A menina chegou em casa, almoçou e novamente pegou o livro e chorou com o protagonista quando ambos viram a aldeia da infância dele se tornar cinzas. Ela teve a impressão de ouvi-lo gritar desesperado. Ela soluçava enquanto William percebia que só sobrou ele e uma história. Sentado sozinho na mata que rodeava o seu palácio há muito tempo roubado pelo primo, ele arquitetada uma forma de reestabelecer seu lugar.
- Você deveria convencer o exército e o povo a se revoltarem contra o falso rei.
- Eu quero vingança antes de ter meu reino.
- Você não é assim. É nobre e corajoso demais para ceder a isso.
William se sobressaltou:
- Quem está falando comigo? Minha consciência?
- Devo estar ficando louca... Ele está falando comigo. Sou a leitora do seu livro.
- Que livro?
Os dois passaram o dia e parte da noite conversando e tentando entender o que estava acontecendo até que ambos dormiram em seus respectivos lugares. No outro dia, a jovem através da história viu Sir William recuperar seu trono seguindo seus conselhos. Eles agora tinham tempo de sobra para conversarem. Ela já havia se apaixonado por outros personagens, mas agora um cavalheiro medieval de um livro antigo dizia- se apaixonado por ela, uma leitora.
Chegou a tal ponto tais sentimentos que tentavam pensar em uma forma de ela entrar no livro ou ele sair dele.
William consultou os homens mais sábios do seu reino, a jovem buscou ajuda no google. Nada. Nada poderia fazê-los se encontrar. Como a vida real pode se mesclar ao fictício? Agora não se tratava da arte imitando a vida ou da vida imitando a arte, era uma ruptura no tempo, história, espaço. Era uma história real tornando-se ficção enquanto a ficção se tornava real.
William conversava com sua leitora, quando da torre do seu palácio avistou um ancião, que todos julgavam louco, o príncipe sabia da fama do idoso, entretanto estava desesperado demais para desperdiçar quaisquer oportunidades. O príncipe atravessou os suntuosos corredores do seu castelo, sendo observado pelos retratos das gerações passadas. Um dos seus soldados trouxe o idoso à presença do corajoso cavalheiro e aos olhos atentos da apaixonada leitora. Ambos cheios de espectativa, ouviram esperançosamente o ancião, que disse após William relatar todos os pormenores da história:
- Meu jovem, há muitos anos atrás, ouvi uma história como a sua.
O príncipe e a leitora ficaram surpresos pelo idoso não pensar que ele enlouquecera tal como os homens mais sábios do seu reino tentaram esconder em um sorriso.
- Infelizmente para resolvê-la você terá que fazer uma escolha.
-Eu abro mão do meu reino - o jovem disse sem titubear.
- Não - disse o ancião levantando a mão para que ele se calasse.
Não há como você sair daqui. Não há como ela entrar.
- Mas o senhor disse que...
- Me deixe terminar, alteza. Está vendo aquelas montanhas quase escondidas pela neblina?
- Sim.
- Atrás delas existe um pêndulo. Dizem que se você ao tocá-lo pode adiantar ou atrasar o tempo em qualquer lugar e espaço. Não importa se for passado ou presente ou futuro.
- Não faça isso, William - a leitora gritou desesperada.
- Mas - continuou o velho - se você alterar o tempo aqui, não poderá mudá-lo lá. E se alterar lá...
- Já entendi. Se eu volto o tempo, só um de nós esquecerá que nos conhecemos.
Enquanto a leitora suplicava, William montava em seu cavalo e seguia para as montanhas.
Ela levantou sobressaltada, o despertador tocava alto. Correu para se arrumar porque tinha prova de matemática naquele dia e já ytinha perdido o ônibus.
Os anos se passaram, a menina tornou-se professora universitária ministrando aulas de literatura medieval. Com muito esforço comprou um apartamento no centro da cidade e realizou o sonho de dar uma vida melhor para sua mãe.
A chuva batia fraquinha na janela, enquanto ela relia Jane Austen. Em dias assim, sentia uma melancolia, como se uma saudade antiga inundasse seu coração. Porém, deveria estar feliz porque comprara duas estantes para finalmente ter sua biblioteca particular. Resolveu desencaixotar os livros que trouxera da casa antiga, sobrará espaço para muitos outros, pensa. No meio da pilha, vê um livro velho marrom sem título na capa, folheia-o e se surpreende ao saber que conta a história de um corajoso cavalheiro medieval.
domingo, 28 de dezembro de 2014
domingo, 21 de dezembro de 2014
Conto de natal
Debruçada na janela, ela observa o tráfego, ainda há carros passando de lá pra cá e de cá pra lá apesar de faltar menos de meia hora para o dia vinte e cinco de dezembro, a noite de natal. Ela aspira fundo, cheiro de asfalto e calor. Está uma noite belíssima.
Atrás dela a casa está toda arrumada, árvore, presentes, presépio, amigo oculto e o aroma saboroso da boa comida torna o ar inebriante. Ela trouxe pudim, sua única especialidade culinária.
A família está reunida. Aparentemente. O irmão e o cunhado discutem política. Quatro sobrinhos riem para os seus celulares, tiram fotos de si mesmos incansavelmente. Ela já perdeu a conta de quantas foram, mais de dez? Outro sobrinho balança a perna e não tira os olhos do relógio enquanto expira e boceja tediosamente. O tio de quase noventa anos já está no terceiro cochilo.
A família está unida, é o que a foto do natal desse ano testemunhará às gerações futuras, supostamente. Mas o que uma foto diz sobre a verdade? O que ela conta sobre reais sentimentos? Um fotógrafo com um olhar artístico conseguiria capturar com sua câmera que sua irmã e seu irmão não se falam há seis meses? E a tensão palpável sobre a futura herança do tio aparecerá em um dos muitos sorrisos?
Seus olhos se detêm no presépio escondidinho sobre um aparador, dividindo espaço com uma profusão de flores artificiais. Ela observa a singela família, está sim unida pelo coração. Pensa, inclusive, na fragilidade do bebê Jesus, ali destituído provisoriamente de sua força e glória. Apenas um bebê. Mais de dois mil anos depois seu nascimento é comemorado em boa parte do mundo. Ainda que sua importância tenha sido diminuida diante das compras, árvores de natal, especiais da tv.
Sentada à mesa com sua família, a recepcionista pensa em sugerir que orem, mas se lembra que a maioria presente não gosta de manifestações religiosas. Ela faz uma oração silenciosa sabendo que seus sobrinhos, se suspeitassem objeto de um pedido, ririam e diriam que a universidade apagou a superstição outrora imbutida em seus intelectos e não precisam de nada disso, Às vezes, ela não sabe qual sobrinho disse o quê, pois todos eles têm os mesmos argumentos, as mesmas piadas, a mesma desconsideração por tudo que simboliza sentimento. Parecem a mesma pessoa habitando corpos diferentes. Provavelmente, as universidades formam máquinas intelectuais, conclui resignada.
A recepcionista, enquanto todos se concentram em seus pratos, volta seus olhos à humildade que o presépio consegue externar. Ela perdeu o bonde da pós-modernidade, entretanto a esperança conseva-se incólume. Quem sabe, um dia, pelo menos os sobrinhos possam rever seus conceitos... Ela cala seu pensamento, pois eles diriam que ela está sendo intolerante. O religioso é sempre o intolerante, ela pensa detestando o termo "religioso" porque é esvaziado de sentido e detestando a palavra intolerância porque está sempre associada a uma pessoa que faz questão de conservar sua fé.
Desta vez é a recepcionista que suspira porque precisou aprender a ficar em silêncio. Ignora o papo que circula na mesa, oscilando entre política, futebol e a novela das nove. O que a salva da solidão grupal é o presépio, a presença daquela singela família, Maria e José cuidam do presente dado à humanidade. Ninguém percebe, os olhos dela estão marejados, sobremaneira cheios da doçura que a cena na manjedoura imprime em sua alma. A recepcionista não está infeliz porque sabe que em lares pobres e ricos, a esperança irradiando do berço de palhas faz companhia a pessoas iguais a ela.
Atrás dela a casa está toda arrumada, árvore, presentes, presépio, amigo oculto e o aroma saboroso da boa comida torna o ar inebriante. Ela trouxe pudim, sua única especialidade culinária.
A família está reunida. Aparentemente. O irmão e o cunhado discutem política. Quatro sobrinhos riem para os seus celulares, tiram fotos de si mesmos incansavelmente. Ela já perdeu a conta de quantas foram, mais de dez? Outro sobrinho balança a perna e não tira os olhos do relógio enquanto expira e boceja tediosamente. O tio de quase noventa anos já está no terceiro cochilo.
A família está unida, é o que a foto do natal desse ano testemunhará às gerações futuras, supostamente. Mas o que uma foto diz sobre a verdade? O que ela conta sobre reais sentimentos? Um fotógrafo com um olhar artístico conseguiria capturar com sua câmera que sua irmã e seu irmão não se falam há seis meses? E a tensão palpável sobre a futura herança do tio aparecerá em um dos muitos sorrisos?
Alguém dirá que todas as famílias são assim. Todas as famílias são assim e nunca se abraçam nem mesmo no natal? Todas as famílias são assim, comemoram uma data que para alguns é religiosa, entretanto tem muito a dizer contra essa religião? Ela conclui que se todas as famílias são assim, não há nada de fraternal em estar juntos no natal. Estão, portanto, apenas cumprindo um protocolo.
Ela tem maisnde sessenta anos, sempre foi recepcionista. Atualmente ajuda no consultório de um dos amigos que é dentista. Leva uma vida simples, não solitária, viaja bimestralmente para o campo porque adora a natureza.Seus olhos se detêm no presépio escondidinho sobre um aparador, dividindo espaço com uma profusão de flores artificiais. Ela observa a singela família, está sim unida pelo coração. Pensa, inclusive, na fragilidade do bebê Jesus, ali destituído provisoriamente de sua força e glória. Apenas um bebê. Mais de dois mil anos depois seu nascimento é comemorado em boa parte do mundo. Ainda que sua importância tenha sido diminuida diante das compras, árvores de natal, especiais da tv.
Sentada à mesa com sua família, a recepcionista pensa em sugerir que orem, mas se lembra que a maioria presente não gosta de manifestações religiosas. Ela faz uma oração silenciosa sabendo que seus sobrinhos, se suspeitassem objeto de um pedido, ririam e diriam que a universidade apagou a superstição outrora imbutida em seus intelectos e não precisam de nada disso, Às vezes, ela não sabe qual sobrinho disse o quê, pois todos eles têm os mesmos argumentos, as mesmas piadas, a mesma desconsideração por tudo que simboliza sentimento. Parecem a mesma pessoa habitando corpos diferentes. Provavelmente, as universidades formam máquinas intelectuais, conclui resignada.
A recepcionista, enquanto todos se concentram em seus pratos, volta seus olhos à humildade que o presépio consegue externar. Ela perdeu o bonde da pós-modernidade, entretanto a esperança conseva-se incólume. Quem sabe, um dia, pelo menos os sobrinhos possam rever seus conceitos... Ela cala seu pensamento, pois eles diriam que ela está sendo intolerante. O religioso é sempre o intolerante, ela pensa detestando o termo "religioso" porque é esvaziado de sentido e detestando a palavra intolerância porque está sempre associada a uma pessoa que faz questão de conservar sua fé.
Desta vez é a recepcionista que suspira porque precisou aprender a ficar em silêncio. Ignora o papo que circula na mesa, oscilando entre política, futebol e a novela das nove. O que a salva da solidão grupal é o presépio, a presença daquela singela família, Maria e José cuidam do presente dado à humanidade. Ninguém percebe, os olhos dela estão marejados, sobremaneira cheios da doçura que a cena na manjedoura imprime em sua alma. A recepcionista não está infeliz porque sabe que em lares pobres e ricos, a esperança irradiando do berço de palhas faz companhia a pessoas iguais a ela.
domingo, 30 de novembro de 2014
Conto de quase Natal
Conto de quase Natal
O frio é de julho, mas é antevéspera de Natal. Ele se veste de Papai Noel porque precisa complementar sua irrisória aposentadoria de pintor de paredes. Quem o vê vestido assim, não pode imaginar a história que sua vida conta. Mas hoje ele é mais presente do que passado. Ele é uma das poucas pessoas que não se lamenta, sua vida foi e é simples e ele, na verdade, sempre esteve muito mais atrás de sossego do que de felicidade. Mas ainda não conquistou nenhum dos dois.
A felicidade, por exemplo, só conhece de nome e supõe que seja mera invencionice humana. Quem é totalmente feliz em um mundo em chamas? A alegria, entretanto, ele, eu e você conhecemos intensamente. Quem não vislumbra alguma alegria quando vê essas crianças em frenesi esperando a vez para ter uma foto junto ao Papai Noel num shopping lotado?
Ele encontra alguma paz quando olha as crianças nos olhos e, em silêncio, faz uma oração pela vida delas. Pede proteção. Quase sem saber, renova sua esperança quando as recebe em seus braços cansados, por isso depois de quase doze horas de trabalho, se sente otimista ao voltar para sua quitinete que fica bem longe do centro.
Naquelas roupas quentes e vermelhas, se esforça para não pensar no Natal, se esforça para não pensar na mesa vazia que o espera. Felizmente, o vazio não é de pão, haverá frutas secas, inclusive. Fora a gentileza do porteiro em visitá-lo, provavelmente ele passará a noite natalina com as recordações de natais anteriores.
Ele não reclama, sobrevive calado e monta sua árvore de um metro e meio. Também tem um presépio. Não gosta que datas importantes passem em branco, afinal seu coração, embora fraco e ferido, não parou de bater e isso é motivo para celebração. Esse é o resumo do que pensa.
Sentado naquela grande cadeira, cercado de crianças, finge que são seus netos só por alguns segundos. Repara as pessoas que passam, muitas estão estressadas,outras com um grande sorriso entram e saem das lojas. Talvez, para alguns, o natal seja como uma licença especial para se estar feliz, momento de deixar todos os problemas para o ano vindouro.
Passadas algumas horas, com as costas doloridas, ele subirá três andares e caminhará em um corredor escuro, o apartamento dele é o último à esquerda, mal ventilado e apertado. Ele se arrastará até lá então, seus passos são inaudíveis, ouve a conversa dos vizinhos, uma tv com som alto e risadas de crianças. Tudo nele é silêncio, ele é silencioso. Parece que não quer se acordar, por isso simplesmente vagueia pelos lugares, é mais uma alma enchendo o mundo. Amanhã mais um dia de trabalho. Evita a tv e os jornais. Come pão com mortadela e ouve músicas antigas, permite-se deitar no sofá e deixar-se inebriar pelas melodias.
Ele não sabe o que a palavra vida significa, não mais. Há muito tempo não se sente vivendo, sua cabeça sempre está em outro lugar. Nas conversas, sua atenção está dividida. Ele esta sempre pensando em tantas coisas ao mesmo tempo: a dificuldade do perdão, contas a pagar, uma depressão a vencer. Mas é Natal, ele pensa angustiado. Até a meia noite do dia vinte e quatro, ele tem esperança, depois serão mais de trezentos e sessenta dias aguardando seu milagre de natal. Um dia, em um estábulo, por algumas horas habitou um milagre. Portanto, ele aguarda o dele e sua espera já dura mais de vinte anos.
Ainda vestido de Papai Noel, ele se debate entre o otimismo e a angústia. Aos poucos se desfaz do personagem e no espelho, é observado por um sujeito para lá de cansado. Passa das dez e meia, o shopping fechará às onze horas, e ele segue para sua casa vazia com um turbilhão de sentimentos socando seu peito, de alguma forma acredita que, de tão acostumado com a dor, ela dói menos. Mas está se enganando.
Ele vai até o ponto de ônibus, o fluxo de automóveis ainda é intenso. Os transeuntes se acotovelam nas calçadas. Ele observa o céu. Desce os olhos devagar da imensidão do cosmos tranquilizadora. Eu paro na frente dele. Ele fica assustado. Ambos sorrimos cheios de perdão.
É quase Natal, eu me lembro que deixei milhares de promessas pelo caminho como quem faz uma trilha para não esquecer o caminho de casa. E o homem que minutos antes se vestiu de Papai Noel sonhando com um milagre, recorda que sua saudade tem o meu nome. Ele diz que eu sou o milagre dele. Ele se tornou o meu. A lição que aprendo com os olhos desse homem é que o mais importante na vida não é ser feliz, como muita gente pensa. O mais importante é sentir-se amado, principalmente quando se está infeliz. Sou amada, ansiosamente aguardada. Há mais de dois mil atrás, um milagre veio vestido com a fragilidade de um bebê, e silenciosamente, debaixo do caos do mundo, pequenos milagres acontecem todos os dias:
-Oi, pai.
Nos abraçamos apertado enquanto a rua barulhenta canta uma nova canção de amor. Porque somos pai e filha outra vez, devagarinho o mundo se torna um lugar mais bonito. Para nós, então, já é Natal.
O frio é de julho, mas é antevéspera de Natal. Ele se veste de Papai Noel porque precisa complementar sua irrisória aposentadoria de pintor de paredes. Quem o vê vestido assim, não pode imaginar a história que sua vida conta. Mas hoje ele é mais presente do que passado. Ele é uma das poucas pessoas que não se lamenta, sua vida foi e é simples e ele, na verdade, sempre esteve muito mais atrás de sossego do que de felicidade. Mas ainda não conquistou nenhum dos dois.
A felicidade, por exemplo, só conhece de nome e supõe que seja mera invencionice humana. Quem é totalmente feliz em um mundo em chamas? A alegria, entretanto, ele, eu e você conhecemos intensamente. Quem não vislumbra alguma alegria quando vê essas crianças em frenesi esperando a vez para ter uma foto junto ao Papai Noel num shopping lotado?
Ele encontra alguma paz quando olha as crianças nos olhos e, em silêncio, faz uma oração pela vida delas. Pede proteção. Quase sem saber, renova sua esperança quando as recebe em seus braços cansados, por isso depois de quase doze horas de trabalho, se sente otimista ao voltar para sua quitinete que fica bem longe do centro.
Naquelas roupas quentes e vermelhas, se esforça para não pensar no Natal, se esforça para não pensar na mesa vazia que o espera. Felizmente, o vazio não é de pão, haverá frutas secas, inclusive. Fora a gentileza do porteiro em visitá-lo, provavelmente ele passará a noite natalina com as recordações de natais anteriores.
Ele não reclama, sobrevive calado e monta sua árvore de um metro e meio. Também tem um presépio. Não gosta que datas importantes passem em branco, afinal seu coração, embora fraco e ferido, não parou de bater e isso é motivo para celebração. Esse é o resumo do que pensa.
Sentado naquela grande cadeira, cercado de crianças, finge que são seus netos só por alguns segundos. Repara as pessoas que passam, muitas estão estressadas,outras com um grande sorriso entram e saem das lojas. Talvez, para alguns, o natal seja como uma licença especial para se estar feliz, momento de deixar todos os problemas para o ano vindouro.
Passadas algumas horas, com as costas doloridas, ele subirá três andares e caminhará em um corredor escuro, o apartamento dele é o último à esquerda, mal ventilado e apertado. Ele se arrastará até lá então, seus passos são inaudíveis, ouve a conversa dos vizinhos, uma tv com som alto e risadas de crianças. Tudo nele é silêncio, ele é silencioso. Parece que não quer se acordar, por isso simplesmente vagueia pelos lugares, é mais uma alma enchendo o mundo. Amanhã mais um dia de trabalho. Evita a tv e os jornais. Come pão com mortadela e ouve músicas antigas, permite-se deitar no sofá e deixar-se inebriar pelas melodias.
Ele não sabe o que a palavra vida significa, não mais. Há muito tempo não se sente vivendo, sua cabeça sempre está em outro lugar. Nas conversas, sua atenção está dividida. Ele esta sempre pensando em tantas coisas ao mesmo tempo: a dificuldade do perdão, contas a pagar, uma depressão a vencer. Mas é Natal, ele pensa angustiado. Até a meia noite do dia vinte e quatro, ele tem esperança, depois serão mais de trezentos e sessenta dias aguardando seu milagre de natal. Um dia, em um estábulo, por algumas horas habitou um milagre. Portanto, ele aguarda o dele e sua espera já dura mais de vinte anos.
Ainda vestido de Papai Noel, ele se debate entre o otimismo e a angústia. Aos poucos se desfaz do personagem e no espelho, é observado por um sujeito para lá de cansado. Passa das dez e meia, o shopping fechará às onze horas, e ele segue para sua casa vazia com um turbilhão de sentimentos socando seu peito, de alguma forma acredita que, de tão acostumado com a dor, ela dói menos. Mas está se enganando.
Ele vai até o ponto de ônibus, o fluxo de automóveis ainda é intenso. Os transeuntes se acotovelam nas calçadas. Ele observa o céu. Desce os olhos devagar da imensidão do cosmos tranquilizadora. Eu paro na frente dele. Ele fica assustado. Ambos sorrimos cheios de perdão.
É quase Natal, eu me lembro que deixei milhares de promessas pelo caminho como quem faz uma trilha para não esquecer o caminho de casa. E o homem que minutos antes se vestiu de Papai Noel sonhando com um milagre, recorda que sua saudade tem o meu nome. Ele diz que eu sou o milagre dele. Ele se tornou o meu. A lição que aprendo com os olhos desse homem é que o mais importante na vida não é ser feliz, como muita gente pensa. O mais importante é sentir-se amado, principalmente quando se está infeliz. Sou amada, ansiosamente aguardada. Há mais de dois mil atrás, um milagre veio vestido com a fragilidade de um bebê, e silenciosamente, debaixo do caos do mundo, pequenos milagres acontecem todos os dias:
-Oi, pai.
Nos abraçamos apertado enquanto a rua barulhenta canta uma nova canção de amor. Porque somos pai e filha outra vez, devagarinho o mundo se torna um lugar mais bonito. Para nós, então, já é Natal.
domingo, 16 de novembro de 2014
É ali que as dores do mundo encontram seu término - ele pensa na pausa do seu árduo trabalho.
Ele escava mais um pouco, alguns metros de terra serão substituídos por um corpo precioso que uma alma preciosa habitava. Ele perdeu as contas de quantas covas cavou. Seu trabalho, como todos opinam, é triste, solitário. Mas na maioria das vezes, não pensa nisso porque tem contas a pagar e o barulho delas costuma ser mais alto. Entretanto, hoje não é um desses dias. Hoje, ele está pensando sobre a vida ao observar a morte.
Só nesta manhã, testemunhou dois velórios. É interessante analisar as pessoas que os seguem. Uns estão desesperados, carregados pelos familiares e amigos; outros, resignados, não há nada mais a fazer é o que o semblante deles denuncia.
Ele observa também como as pessoas se distinguem na morte, embora o cemitério seja um lugar comum a todos, a riqueza, a pobreza e a indigência mostram suas tonalidades também ali. Só olhando as lápides é possível saber o status de cada um. Isso também é triste - pensa o coveiro.
Observou horas antes o cortejo fúnebre, um dia de verão enfeitava o céu em contraste com a dor daquelas pessoas. Algumas mulheres choravam ruidosamente, os homens limpavam uma ou outra lágrima furtiva, igualmente lamentavam-se. Havia muitas pessoas, deveria ser alguém muito amado.
Uma menininha fantasiada com uma roupinha de princesa fazia com que os presentes, por alguns segundos, esquecessem a dor. Alguns em lágrimas, davam um breve sorriso ao testemunhar a inocência da criança brilhando ali. Não havia como não desviar a atenção do funeral para a menina que, embora calada, enviava uma mensagem subliminar de que a vida deve recomeçar. Sempre.
Ele escava mais um pouco, alguns metros de terra serão substituídos por um corpo precioso que uma alma preciosa habitava. Ele perdeu as contas de quantas covas cavou. Seu trabalho, como todos opinam, é triste, solitário. Mas na maioria das vezes, não pensa nisso porque tem contas a pagar e o barulho delas costuma ser mais alto. Entretanto, hoje não é um desses dias. Hoje, ele está pensando sobre a vida ao observar a morte.
Só nesta manhã, testemunhou dois velórios. É interessante analisar as pessoas que os seguem. Uns estão desesperados, carregados pelos familiares e amigos; outros, resignados, não há nada mais a fazer é o que o semblante deles denuncia.
Ele observa também como as pessoas se distinguem na morte, embora o cemitério seja um lugar comum a todos, a riqueza, a pobreza e a indigência mostram suas tonalidades também ali. Só olhando as lápides é possível saber o status de cada um. Isso também é triste - pensa o coveiro.
Observou horas antes o cortejo fúnebre, um dia de verão enfeitava o céu em contraste com a dor daquelas pessoas. Algumas mulheres choravam ruidosamente, os homens limpavam uma ou outra lágrima furtiva, igualmente lamentavam-se. Havia muitas pessoas, deveria ser alguém muito amado.
Uma menininha fantasiada com uma roupinha de princesa fazia com que os presentes, por alguns segundos, esquecessem a dor. Alguns em lágrimas, davam um breve sorriso ao testemunhar a inocência da criança brilhando ali. Não havia como não desviar a atenção do funeral para a menina que, embora calada, enviava uma mensagem subliminar de que a vida deve recomeçar. Sempre.
quinta-feira, 30 de outubro de 2014
Agraciada
Do sofá, ela deslizou até o chão, ali ficou até que a tarde bonita de verão se tornasse uma noite de tempestade e trovoadas. No teto, ela vê as luzes dos automóveis passando clareando momentaneamente a penumbra em que está imersa.
Na sua fraqueza, já faz mais de vinte horas que não se alimenta, nem água bebeu. Obedecendo ao cliche da mulher trocada por mulher mais jovem, ela chorou até não haver mais lágrimas.
Ele foi embora, sem aviso prévio, sem uma grande discussão, exceto o grito mudo que até agora estilhaça o coração dela à semelhança de uma pedra quebrando um delicado vitral. Ela olha o passado em busca de seus erros, tentando perceber onde deixou de ter importância para ele. Será que foi o péssimo gosto musical dela? -pergunta-se desesperada. Em algum momento, se tornou rabugenta e cansada demais a ponto de não percebê-lo?
Sua mente gira e a culpa a condena impiedosamente. Culpada. Casamento desfeito. Solidão. Ela espera o relógio fazer os dias girarem e levar as lembranças que ele deixou nos móveis, nos livros ainda não lidos com as páginas dobradas nos trechos que ele mais gostou... Não teve coragem de jogar as coisas dele fora. Não admite que ele não voltará. As horas tristes se arrastam em contraste com a rapidez dos escassos momentos de paz. Momento em que crê em um retorno.
O que deve fazer agora? Voltar para sua antiga cidade, rever seus parentes e amigos, chorar no ombros deles? Ou continuar na janela até tarde na esperança de que o carro dele desponte na esquina e um marido pródigo venha de joelhos pedir perdão? Amanhã não poderá fugir do trabalho, uma semana de ausência é tempo demais, afinal além de uma amor e de uma grande ilusão, ninguém morreu.
O dias obedecem a sua ordem e pouco a pouco um destino é construido, ela vagueia pelos lugares, está no trabalho, entretanto só uma parte dela se concentra no serviço. Observa o relógio, as horas se arrastam e nem todo remédio do mundo tem conseguido fazê-la dormir. É inútil qualquer palavra de conforto, é inútil formular qualquer teoria sobre o assunto. A dor continua ali, persistente, quase se tornado substantivo concreto em sua alma cansada.
Esperança? Tornou-se algo vago, aparecendo esporadicamente entre a angústia e o desespero. A esperança é uma palavra proibida, pois tudo que tinha por certo, agora é incerto. Não pode contar nem com sua própria companhia, uma vez que a pessoa que contempla no espelho - triste, chorosa, desanimada - é um espectro de quem foi um dia e não pode servir de apoio nem para si mesma. Das migalhas do que foi, não consegue formar nem meia mulher.
Atravessa o grande corredor do casarão antigo onde trabalha, evita o espelho. Seus passos rápidos ganham a rua e um dia bonito parece debochar da sua tristeza, ela desce os degraus, atravessa a rua e passeia pelo calçadão contemplando a praia cheia. Muitos aproveitam a tarde ensolarada para aproveitar o tempo extra que o horário de verão possibilita. Ela não aproveita nada, só observa. Observa as pessoas em pares, grupos de amigos, famílias enormes.
Na sua solidão, inveja aquele suposto amor gritado pelos desconhecidos. Julga-os mais felizes do que de fato são. Sente-se a dona das dores do mundo. Mais tarde, ela assistirá um programa sensacionalista, em meio aos gritos de um apresentador nervoso e fingindo-se indignado, ela se sentirá acompanhada, ao perceber que outros também estão sofrendo e a dor, como todos sabem, é parte da vida.
Há momentos que não sente mais nada, outros sente absurdamente o silêncio da ausência dele. Ela se odeia nas hora vagas. Há um remédio que cause amnésia? Inventaria um - devaneia com o impossível.
Um mês já passou, ele não voltará. Mas como uma tarde de sol após uma manhãzinha nublada, ela de repente se vê encantada. Receberá um presente em alguns meses.
E superando a dor, percebe que chamar aquele outro sentimento de amor é quase um sacrilégio em comparação com o Amor verdadeiro que hora se expande dentro dela. Sonha para ele ou ela um futuro promissor porque nem nasceu e já curou um coração. Então deverá ser como Luther King, Madre Tereza... Grandioso será o destino dele ou dela.
Ela reaprende a alegria, acha as tardes de verão lindas, vê graciosidade até na chuva que a pega desprevenida depois do trabalho. Como chamará seu encanto? Graça, dom, dádiva, todos se encaixam perfeitamente.
Na sua fraqueza, já faz mais de vinte horas que não se alimenta, nem água bebeu. Obedecendo ao cliche da mulher trocada por mulher mais jovem, ela chorou até não haver mais lágrimas.
Ele foi embora, sem aviso prévio, sem uma grande discussão, exceto o grito mudo que até agora estilhaça o coração dela à semelhança de uma pedra quebrando um delicado vitral. Ela olha o passado em busca de seus erros, tentando perceber onde deixou de ter importância para ele. Será que foi o péssimo gosto musical dela? -pergunta-se desesperada. Em algum momento, se tornou rabugenta e cansada demais a ponto de não percebê-lo?
Sua mente gira e a culpa a condena impiedosamente. Culpada. Casamento desfeito. Solidão. Ela espera o relógio fazer os dias girarem e levar as lembranças que ele deixou nos móveis, nos livros ainda não lidos com as páginas dobradas nos trechos que ele mais gostou... Não teve coragem de jogar as coisas dele fora. Não admite que ele não voltará. As horas tristes se arrastam em contraste com a rapidez dos escassos momentos de paz. Momento em que crê em um retorno.
O que deve fazer agora? Voltar para sua antiga cidade, rever seus parentes e amigos, chorar no ombros deles? Ou continuar na janela até tarde na esperança de que o carro dele desponte na esquina e um marido pródigo venha de joelhos pedir perdão? Amanhã não poderá fugir do trabalho, uma semana de ausência é tempo demais, afinal além de uma amor e de uma grande ilusão, ninguém morreu.
O dias obedecem a sua ordem e pouco a pouco um destino é construido, ela vagueia pelos lugares, está no trabalho, entretanto só uma parte dela se concentra no serviço. Observa o relógio, as horas se arrastam e nem todo remédio do mundo tem conseguido fazê-la dormir. É inútil qualquer palavra de conforto, é inútil formular qualquer teoria sobre o assunto. A dor continua ali, persistente, quase se tornado substantivo concreto em sua alma cansada.
Esperança? Tornou-se algo vago, aparecendo esporadicamente entre a angústia e o desespero. A esperança é uma palavra proibida, pois tudo que tinha por certo, agora é incerto. Não pode contar nem com sua própria companhia, uma vez que a pessoa que contempla no espelho - triste, chorosa, desanimada - é um espectro de quem foi um dia e não pode servir de apoio nem para si mesma. Das migalhas do que foi, não consegue formar nem meia mulher.
Atravessa o grande corredor do casarão antigo onde trabalha, evita o espelho. Seus passos rápidos ganham a rua e um dia bonito parece debochar da sua tristeza, ela desce os degraus, atravessa a rua e passeia pelo calçadão contemplando a praia cheia. Muitos aproveitam a tarde ensolarada para aproveitar o tempo extra que o horário de verão possibilita. Ela não aproveita nada, só observa. Observa as pessoas em pares, grupos de amigos, famílias enormes.
Na sua solidão, inveja aquele suposto amor gritado pelos desconhecidos. Julga-os mais felizes do que de fato são. Sente-se a dona das dores do mundo. Mais tarde, ela assistirá um programa sensacionalista, em meio aos gritos de um apresentador nervoso e fingindo-se indignado, ela se sentirá acompanhada, ao perceber que outros também estão sofrendo e a dor, como todos sabem, é parte da vida.
Há momentos que não sente mais nada, outros sente absurdamente o silêncio da ausência dele. Ela se odeia nas hora vagas. Há um remédio que cause amnésia? Inventaria um - devaneia com o impossível.
Um mês já passou, ele não voltará. Mas como uma tarde de sol após uma manhãzinha nublada, ela de repente se vê encantada. Receberá um presente em alguns meses.
E superando a dor, percebe que chamar aquele outro sentimento de amor é quase um sacrilégio em comparação com o Amor verdadeiro que hora se expande dentro dela. Sonha para ele ou ela um futuro promissor porque nem nasceu e já curou um coração. Então deverá ser como Luther King, Madre Tereza... Grandioso será o destino dele ou dela.
Ela reaprende a alegria, acha as tardes de verão lindas, vê graciosidade até na chuva que a pega desprevenida depois do trabalho. Como chamará seu encanto? Graça, dom, dádiva, todos se encaixam perfeitamente.
domingo, 19 de outubro de 2014
Lírica
À semelhança da canção, ela também quer uma casa no campo, se não for pedir muito, que seja vizinha de um rio cuja profundidade fosse suficiente para se ter um barquinho ou uma jangada.
A casa poderia ser simples, alguns livros e lembranças da família bastariam somados a um jardim florido e árvore para construir um balanço. Sentada à margem do rio, veria os dias começarem e terminarem, ela não gostaria de receber notícias.
Em sua bolsa colocaria somente o necessário, de supérfluo levaria alguma maquiagem porque as noites estreladas campestres merecem tal homenagem.
Inicialmente, ela se incomodaria com os mosquitos, mas o que não pode acontecer é este mundo ter a oportunidade de magoá-la mais uma vez. De forma caseira, trataria das picadas dos insetos e no outro dia estaria com sua alma incólume novamente.
Não lamenta o que deixaria para trás, violência e medo não fazem falta a ninguém. As notícias das eleições não importariam mais, sem televisão ou internet, viveria em um mundo à parte, sentindo-se em um universo mais promissor e anos-luz mais tolerável.
Ela divaga sobre sua vida e deseja com toda força se livrar da angústia criada pela labuta diária de se reorganizar diante de uma sociedade que reverência o fugaz. Deixaria, portanto, sua vida sofisticada pela vida monótona do campo. Veria as horas passarem através do fluxo do rio. Maravilhada, entenderia a dimensão da palavra paz.
Sabe-se romântica, lírica, criança e boba até, porém é forte porque mantém a fé. Fé e esperança que nunca depositou neste mundo. Não crerá em mudanças gerais sem mudanças particulares, pensa determinada. Deixará capítulos de sua história como legado para aqueles que iguais a ela cansaram de se sentir fragmentados.
Pedirá às novas gerações que se seu coração se quebrar como tantas outras vezes aconteceu, joguem os pedaços ao mar. Levados pela água, talvez encontrem as antigas garrafas que guardam bilhetes de amor, juntos - sentimentos e palavras - contarão uma história bonita, nisso ela ainda acredita.
Por que ela quer o campo e não uma ilha particular? Porque as ilhas foram compradas por milionários, a exploração imobiliária não poupou nem o discurso politicamente correto e suas mansões donas de licenças ambientais chegaram ao fim do mundo.Quer uma casa no campo a várias horas de qualquer civilização.Ela quer o sossego que ver flores nascerem, morrerem e renascerem proporcionam. Quer, fazendo as contas direitinho, cuidar da sua alma tão delicada.
Manterá seus valores, expectativas, planos. Levará suas cicatrizes, superará as lembranças e deixará esse mundo anarquista apodrecer longe da doçura que ela tenta construir dentro e fora de si. Terá uma vida quase monástica, ficará velhinha relendo seus livros preferidos. São seus planos, simples tal qual a casinha no campo tão almejada.
Não é hábil com terra, talvez possa aprender a plantar e colher. De qualquer forma, quer ver o dia passar, ora olhará as estrelas do céu, ora o reflexo delas no rio. Verá também sua imagem mudar tendo a água como espelho, entretanto, lá, num lugarzinho bonitinho que lembra cantigas de infância, esperará a eternidade.
Não é hábil com terra, talvez possa aprender a plantar e colher. De qualquer forma, quer ver o dia passar, ora olhará as estrelas do céu, ora o reflexo delas no rio. Verá também sua imagem mudar tendo a água como espelho, entretanto, lá, num lugarzinho bonitinho que lembra cantigas de infância, esperará a eternidade.
domingo, 12 de outubro de 2014
A aniversariante
A casa está enfeitada, parte do sol se pôs ali hoje. É o aniversário dela. Usa maquiagem e roupas novas. O vestido é simples, mas ela se sente florescendo e aprendendo. Porque hoje o dia é especial, permite convencer-se de que é a mulher mais bonita do mundo. Só por hoje.
O céu de quase verão está mais do que azul, ela pergunta à moça refletida no vidro da janela onde está a menina otimista que um dia foi. Volta-se para o espelho, colocado atrás da porta, não deixa de perceber que o tempo passou e a vida a modificou. Ainda ontem, ela era uma menina que gostava de escrever histórias e desenhar, hoje apenas sabe que deverá perdoar a passagem do tempo e, de cabeça erguida, renascer sempre.
Quanto aos seus sonhos, como fará para realizá-los? Nunca prescindirá da sua fé, responde para si mesma, decidida. Alguns sonhos mudaram, outros se modificaram e alguns deixou propositalmente pela estrada porque eram inviáveis, portanto teimar era sofrer demais.
A aniversariante rodopia em frente ao espelho. Sabe-se adulta, mas a criança que um dia foi nunca desaparecerá de vez. Isso é facilmente percebido na ingenuidade mostrada ao encarar alguns obstáculos da vida. É criança porque ainda faz birra. É criança também no sorriso maroto que a cara adulta tenta disfarçar.
De vez em quando, quer viajar para dentro dos seus livros favoritos, porque o mundo a tortura demais. E por falar em mundo, a aniversariante deverá continuar insistindo, brigando, para que ele seja o que ela acredita que ele deve ser ou se resignará nobremente, com a sensação cuja máxima será "Fiz todo o possível"?
Repara na delicadeza do tecido florido que compõe seu vestido e gostaria de um mundo consertado. Simples assim. Acordar com um mundo renovado de presente. Ela gosta de fantasiar finais felizes impossíveis e guarda na sua alma um romantismo só visto na literatura dos anos 1800.
É conselheira, divertida, às vezes simpática. Sempre emotiva, mesmo ao gabar-se de forte. Sua fragilidade se torna sua força, quando compreende a dor dos outros, sabendo que a sensibilidade diante do sofrimento alheio é um diamante raramente encontrado por ai.
Ela assiste a tv, tem enxaqueca, não é imune. Conhece a tristeza como pouca gente da sua idade. É alegre, principalmente quando compra roupas e acessórios, porém não confia em promessas de felicidade porque a vida deve ser vivida hora a hora.
Alguns dias a esperança escorre do seus dedos e ela precisa montar seu coração como uma criança brincando com um quebra-cabeça, ao fazer este custoso trabalho, ela acrescenta mais humildade aos seus sentimentos para torná-los, quem sabe, inquebráveis. Ela cantarola em inglês, faz dieta e exercícios, é dinâmica. Mas não sabe que, nos olhos dela, o mundo tem um reflexo mais bonito.
terça-feira, 7 de outubro de 2014
Ao professor com carinho
É mais um dia comum. O professor nem lembra da sua data. Acorda apressado, tateando pelo escuro, procura seus óculos no criado-mudo e esbarra nos livros que lê, deixando tudo cair. Banho para despertar e café, companheiro de longa data, ajudará na concentração.
É cedo ainda, o sol desponta no céu, já reinando absoluto. O professor cantarola sua música preferida e se pergunta: quantas vezes já fez este trajeto até a escola? Incontáveis vezes. Quantas aulas já preparou? Quantas avaliações? Quantos alunos? Impossível saber.
Tudo que sabe é que possui um ofício e nesse exercício experimenta diversas emoções. Tantas vezes dobrou seus problemas e os guardou no bolso da camisa antes de entrar na sala de aula. Outras vezes, a motivação que o professor tinha cabia em uma colher de chá, mesmo assim a multiplicou para dezenas de alunos.
É mágico, sensível, psicólogo, amigo. Ao vestir tantos papéis, aprende a arte de ensinar. Se empresta e acompanha as mudanças da sua alma como o marinheiro analisando as marés. Já entrou na sala leve, saiu carregando o mundo. Assistiu aos jornais e o universo pareceu estar sob sua tutela, mas a turma estava interessada e o curou provisoriamente de sua angústia.
Ele podia apenas cumprir uma tarefa, mas como não se emocionar com a matéria que ensina? Vê tanta beleza no conhecimento que se não deixar sua voz reverberar, tem certeza de que implodirá, tornando-se poeira igual àquela que sobrava em suas mãos do antigo giz.
É professor e jardineiro, lança a semente à espera de que frutifique até mesmo no concreto. Ele é, inclusive, contorcionista, quando precisa encaixar tantos saberes em escasso tempo. É um pouco profeta ao anunciar:"Se vocês não estudarem..." Tem paciência de avô, mesmo quando jovem. Estudo, dedicação e tempo tornaram-lhe muito mais eficiente do que o google, por isso conserva a austeridade da antiga Barsa, só que em uma roupagem mais moderna.
Como professor aprende todos os dias a perdoar. Perdoa a ingratidão do tempo e do sistema. Perdoa os dias que correm adulterando sua imagem no espelho. O professor, em sua sala de aula, quando retira seus olhos do quadro e olha para a turma, percebe quantos anos sobre ele já passaram. Parece com uma antigo carvalho tentando sobreviver às alegrias e provações das estações.
É humilde o bastante para saber que não é super-herói, dói saber que não salvará o mundo como um dia planejou, mas faz bem a sua parte ao dizer aos seus alunos que juntos, quem sabe, construirão um amanhã mais bonito.
Sabe que marcou alguns corações, sabe que seu nome é a senha de e-mail ou da conta no banco de muita gente. Alguns alunos sorriem ao se lembrar dele porque ele sorri quando se sente parte do progresso deles. Nos dias mais difíceis, as lembranças o embalam. Merece reconhecimento, abraço sincero, livros, pois seu trabalho não é um trabalho apenas. Ele não é um operário executando uma repetitiva função, é, antes de tudo, um construtor de vidas.
Lá vai ele caminhando pelo corredor da escola, passo apressado, livro debaixo do braço, veste simplicidade para ensinar e aprender. Talvez o professor nem pense nisso, entretanto o que ele mais ensina é esperança.
I
É cedo ainda, o sol desponta no céu, já reinando absoluto. O professor cantarola sua música preferida e se pergunta: quantas vezes já fez este trajeto até a escola? Incontáveis vezes. Quantas aulas já preparou? Quantas avaliações? Quantos alunos? Impossível saber.
Tudo que sabe é que possui um ofício e nesse exercício experimenta diversas emoções. Tantas vezes dobrou seus problemas e os guardou no bolso da camisa antes de entrar na sala de aula. Outras vezes, a motivação que o professor tinha cabia em uma colher de chá, mesmo assim a multiplicou para dezenas de alunos.
É mágico, sensível, psicólogo, amigo. Ao vestir tantos papéis, aprende a arte de ensinar. Se empresta e acompanha as mudanças da sua alma como o marinheiro analisando as marés. Já entrou na sala leve, saiu carregando o mundo. Assistiu aos jornais e o universo pareceu estar sob sua tutela, mas a turma estava interessada e o curou provisoriamente de sua angústia.
Ele podia apenas cumprir uma tarefa, mas como não se emocionar com a matéria que ensina? Vê tanta beleza no conhecimento que se não deixar sua voz reverberar, tem certeza de que implodirá, tornando-se poeira igual àquela que sobrava em suas mãos do antigo giz.
É professor e jardineiro, lança a semente à espera de que frutifique até mesmo no concreto. Ele é, inclusive, contorcionista, quando precisa encaixar tantos saberes em escasso tempo. É um pouco profeta ao anunciar:"Se vocês não estudarem..." Tem paciência de avô, mesmo quando jovem. Estudo, dedicação e tempo tornaram-lhe muito mais eficiente do que o google, por isso conserva a austeridade da antiga Barsa, só que em uma roupagem mais moderna.
Como professor aprende todos os dias a perdoar. Perdoa a ingratidão do tempo e do sistema. Perdoa os dias que correm adulterando sua imagem no espelho. O professor, em sua sala de aula, quando retira seus olhos do quadro e olha para a turma, percebe quantos anos sobre ele já passaram. Parece com uma antigo carvalho tentando sobreviver às alegrias e provações das estações.
É humilde o bastante para saber que não é super-herói, dói saber que não salvará o mundo como um dia planejou, mas faz bem a sua parte ao dizer aos seus alunos que juntos, quem sabe, construirão um amanhã mais bonito.
Sabe que marcou alguns corações, sabe que seu nome é a senha de e-mail ou da conta no banco de muita gente. Alguns alunos sorriem ao se lembrar dele porque ele sorri quando se sente parte do progresso deles. Nos dias mais difíceis, as lembranças o embalam. Merece reconhecimento, abraço sincero, livros, pois seu trabalho não é um trabalho apenas. Ele não é um operário executando uma repetitiva função, é, antes de tudo, um construtor de vidas.
Lá vai ele caminhando pelo corredor da escola, passo apressado, livro debaixo do braço, veste simplicidade para ensinar e aprender. Talvez o professor nem pense nisso, entretanto o que ele mais ensina é esperança.
I
sexta-feira, 3 de outubro de 2014
O homem, o livro e o ônibus
Ônibus quase vazio, pura raridade para o horário. Tipos diversos o habitam aqui e ali. Uma senhora de mãos postas sobre o colo olha o mundo com olhos de novidade. Um jovem cochila no banco da frente. Uma mulher cheia de brincos balança as pernas denunciando sua aparente expectativa. Todos vivos, corações pulsando, exalam alguma esperança. Vidas colocadas no mundo, talvez sonhando, talvez felizes, talvez apenas esperando. Alheio a essas reflexões, um homem com seu livro mora provisoriamente em outro mundo.
O balanço do ônibus não o retira da sua profunda atenção. Talvez leia ficção científica e está, então, temporariamente a salvo do mundo terrorista que se avoluma a nossa frente. Se lê poesia, embalado pela doçura e sonoridade das palavras, vê sua alma banhar-se com beleza.
Quem sabe o livro tem histórias engraçadas e para parecer equilibrado, se contorce de ri por dentro, enquanto olha por sobre os ombros para ver se não saiu correndo um furtivo sorriso.
Ele se movimenta no banco desconfortável, ignora o barulho, a conversa, a campanhia do ônibus, o livro deve ser muito interessante porque o deixa indiferente ao que acontece. Nas linhas da história, talvez agora seja um personagem dos romances de Austen ou Alencar e nesse instante salta do cavalo para salvar sua dama em perigo. Enquanto se imagina preso àquela narrativa, esquece sua árdua rotina, agarrando-se à segurança do final feliz que o estilo dos autores denuncia.
Pode ser que o livro seguro por aquelas mãos calejadas seja um drama que arranca lágrimas do mais frio espírito, e ele, agora, se esforça para conter a emoção. Se este mesmo for o caso, pobre homem, sua leitura o faz conhecer vidas tão ou mais sofridas do que a dele. Ao ler aquelas linhas, ele transpassa sua própria dor e de forma vicária, experimenta o sofrimento alheio, permitindo-se esquecer dos seus.
Contos de fada agradam a todos, não é impossível que este passageiro esteja visitando a infância e divaga como a vida passou rápido, quando, através desses contos curtos, ele volta a ser a criança que um dia foi. Outra hipótese é que ele tem uma criança em casa e precisa compreender direitinho a história para conta-la antes do filho ou neto ir dormir.
Se ele lê filosofia, talvez queira simplesmente descobrir como gerenciar o caos do mundo. Compreende-lo para muda-lo. Exercício extenuante fadado ao insucesso, portanto, ele deveria trocar de livro. Não seria uma ma ideia ler um pouco de histórias de terror... colocar o coração para bater mais depressa.
O homem tem um sobressalto e acorda da sua leitura assustado. Deve ter perdido a descida, é o que sua pressa deixa transparecer. Ele aperta a campainha, salta do onibus apressado, livro de baixo do braço, passadas rápidas para viver sua inevitável vida.
quinta-feira, 25 de setembro de 2014
Flores
É mais um dia, ele chega ao seu trabalho e contempla silente o imenso jardim que o espera. Tem tanto a fazer, seu ofício não se resume apenas a aparar a grama. Sem saber, ele é quase um artista. Não porque enfeita jardins escolhendo as flores mais bonitas, cortando folhas secas, distribuindo sementes. Mas ele é, ao mesmo tempo que jardineiro, o regente de uma orquestra.
Claro que obedece às estações, entretanto são suas mãos experientes que, tal qual a mãe embalando um filho, possibilita a vida. Não é seu sopro que origina o nascimento, ele é humilde o suficiente para saber-se simples intermediário, são os seus cuidados zelando o crescimento que faz dele tão necessário.
Curvado, escavando a terra para abrigar a promissora semente, ele é tudo agora, menos um homem comum, abre o caminho para beleza. Talvez sem saber, outras vezes sabendo, o jardineiro cultiva o jardim com indizível doçura.
Ao vê-lo sozinho, julgam-no solitário, não, a terra sob seus pés em silêncio sobrevive a histórias. Ela é memória de tantas flores que ali viveram, morreram e renasceram. Ao regar a preciosa semente, ele ouve o canto da beleza.
Sob as abas de um chapéu de palha, com a meticulosidade de um cirurgião, ele poda aqui e ali os galhos que ressecaram sem saber a metáfora da sua vida que a natureza acaba de contar. Ao dedilhar as sementes, adubá-las, regá-las, ele não espera nenhuma notoriedade, seu trabalho não faz o que hoje se entende por sucesso, na verdade, ele nada espera porque sabe-se mero guardião. A semente pode até mesmo ser semeada pelo vento, mesmo em um solo de concreto, porque há uma autoridade subjacente a qualquer ação humana, e no fundo do peito ele sabe disso.
Apesar do seu esmero algumas plantas precisam de especial cuidado. Ao perceber que a raiz está enferma, ele corta o frágil galho e o sutura em uma base mais promissora. Ele não desconfia, não pensa sobre o delicado assunto, entretanto ao enxertar, salva um pouco o mundo do prometido deserto de cimento há anos perpetrado pela construção de arranha-céus.
É fim de tarde, o solzinho de inverno desaparece sobre a sua cabeça dando lugar a uma fina garoa. O jardineiro ainda tem trabalho a fazer, colhe algumas rosas, seus dedos grossos não reclamam dos espinhos. Talvez ele esteja habituado à beleza, mas nunca será indiferente ao encanto dela.
As rosas, lírios, gardênias, margaridas, acácias e variadas espécies pela manhã terão diversos propósitos: alegrarão uma sala vazia, presentearão o enfermo, homenagearão uma dedicada amiga, estarão na lapela do noivo e a noiva, cheia de expectativas, estará mais bonita também graças a elas e a igreja caprichosamente ornada. Onde as flores estiverem, todos serão lembrados do trabalho de um humilde jardineiro.
domingo, 21 de setembro de 2014
Ainda
Com seu vestidinho florido, ela corre para o balanço, sua
brincadeira preferida. A mãe a empurra e
ela grita feliz “Mais alto, mais alto”. Ela só vai sozinha até o escorrega, a
mãe corre sem fôlego para não deixá-la ir muito longe. A maior dor que já
sentiu foi o joelho ralado, quando tentou escalar uma árvore.
Os cabelos da menininha reluzem ao sol da manhã e ela ainda
não conhece o mundo. Seus pais não a deixam assistir aos jornais. Nunca ouviu
falar sobre a fome, a guerra ou a violência, também não compreenderia se
ouvisse. Seu maior aborrecimento é não tomar sorvete, se a garganta estiver
inflamada.
Febre já teve, já chorou até dormir. Seus pais dizem não.
Ela é só uma criança e seus pezinhos minúsculos contrastam com um mundo enorme
para, quem sabe um dia, conhecê-lo. Mas ela janta às seis e ouve historinhas
politicamente corretas. Ela não precisa conhecer o mundo. Ainda. Ele pode
esperar por ela.
No intenso tráfego, de mãos dadas com a mãe, ela atravessa as
ruas da cidade. Seu vestido cor de rosa se destaca entre o corre-corre dos
executivos, o dia cinzento e a fumaça dos veículos. Vai ao dentista arrancar um
dente de leite. À noite, tem pesadelos e
seu pai a embala como se outra vez tivesse um ano de idade e pela manhã já esqueceu. Não se preocupa, não é hora de conhecer o mundo, ainda.
Um dia, sua infância estará dormindo no
álbum de retratos guardado no fundo da gaveta, mas ainda é criança e as
notícias do jornal de ontem, de hoje e de amanhã não a abalam. Ela não pensa
sobre a inflação, não reparou que na mesa do café da manhã não havia queijo.
Sabe que o mundo é redondo, se encanta com as estrelas. Não sabe que outras crianças passam frio e fome, embora tenha perguntado aonde estão os pais
dos garotos que vendem balas no sinal. Foi avisada sobre o risco de falar com
estranhos, aprendeu a não aceitar nada deles. Já ficou de castigo no quarto
e chorou ao pensar que desagradou o Papai Noel. Teve medo
de não ganhar presentes. Não sabe que existe gente trabalhando nos lixões. Ainda não conhece o mundo.
Morre de medo de pessoas fantasiadas e não acha palhaços engraçados. Gosta de livrarias e aprendeu a ler algumas palavras, até o fim do ano lerá quase tudo, a professora prometeu. Depois do almoço, adormeceu no sofá e foi arrancada do sono pelos trovões da forte chuva que inundou sua cidade. Ela monta um quebra-cabeça no chão enquanto pessoas próximas dali ficaram desalojadas. É uma menininha ainda e não conhece o mundo.
Já ouviu sua mãe dizendo que não gostaria que ela crescesse, queria sua filhinha para sempre resguardada nos seus braços e deseja que cada minuto tenha a durabilidade de uma hora. Observa pensativa a curva de crescimento da garotinha, mais um centímetro. O mundo fez uma promessa a todas as crianças.
Ama seus pais e suas bonecas, adora a maioria dos amiguinhos do colégio e desenha sua casa repetidas vezes no mesmo papel, cercada por lápis coloridos. Faz dobradura, pinta o sete. Levada. Saudável. Feliz. Criança. Nada sabe do mundo, ainda.
Colhe flores no jardim, faz comidinha com folhas de laranjeira. Abraça sem parar o bebê da vizinha. Usa batom e sandalinhas de dedo. Tem vários sentimentos que ainda não sabe o nome. Nunca teve o coração partido ou as esperanças espezinhadas. Quer ser veterinária igual a Barbie ganhada no aniversário. Não sabe o que é ter um dia difícil. Tem sonhos que o mundo mostrará um dia irrealizáveis, ele não disse isso a ela, ainda.
Gosta de aniversários e piquenique. Rola no pequeno declive do parque e chega em casa cansada. Dorme preguiçosamente no sofá. Não sabe que o mundo, dia desses, se revelará para ela, por enquanto, ainda pode dormir em paz.
quinta-feira, 11 de setembro de 2014
Ilhado
Amassada
entre grandes edifícios, há uma casa antiga. Única testemunha da época
do Brasil colonial, nela viveram grandes nobres, bailes sem fim foram
dados ali. Inclusive, nos tempos da ditadura, pessoas se esconderam no
porão que ela ainda tem.
Ela e ele têm tanto em comum. Ambos ficaram abandonados até se encontrarem. Ele a comprou em um leilão, os herdeiros não a consideraram bonita, então não pagaram os impostos. Aos olhos da prefeitura a casa não servia para abrigar nada, a história dela era simples demais para atrair visitantes.
Raspou o fundo do fundo da poupança para conseguir comprá-la, julgaram-no excêntrico por querer algo que ninguém quis. Ainda mais depois de tudo que aconteceu. Desde cedo, dedicou-se ao trabalho, fez investimentos e, anos depois, em uma jogada mal calculada, viu o esforço de uma vida inteira deixar de ser suficiente. Um dia era rico, no outro não era mais alguém.
Mais cedo, ele limpou o pequeno jardim. Há uma árvore promissora, uma roseira seca, percebeu fascinado uma flor germinando nas ranhuras do muro de concreto. Cuidará de tão frágeis vidas.
Ontem, em um bazar, comprou um sofá tão antigo quanto a casa. Hoje é véspera de natal, ele limpou a sala, arrastou móveis, Da vida antiga, permitiu-se trazer uma árvore de natal e em uma loja de um e noventa e nove comprou enfeites variados e a embelezou modestamente.
Embora haja muito para fazer naquela casa que aos olhos dele é enorme, permite-se da janela observar a imponente cidade. Nos arranha-céus, muitas luzes estão apagadas, provavelmente foram para casa de parentes comemorarem a data festiva. Foram fazer parte do seu presépio pessoal ou, à semelhança dele e sua casa, estão de luzes e alma apagadas. Reflete, sob o brilho fraco que as luzes da árvore propiciam: acende, apaga, claro, escuro...
Horas antes a rua estava só frenesi, os consumidores aproveitavam para comprar as famosas lembrancinhas de natal, cujos presenteados dois dias depois, se muito, abandonarão no fundo do armário; esperando a oportunidade de presentear outros conhecidos, aprisionando-as em um econômico círculo vicioso.
Ele suspira aliviado, achando um ponto positivo na sua aclamada falência: este ano rompeu a tradicional compra das lembrancinhas. Desembaça o vidro com a camisa, consegue ouvir o bate-papo animado dos vizinhos. Esparsos fogos de artifício colorem o céu nublado. Debruçado sobre si mesmo, repassa detalhes da sua história: agora percebe o quanto se iludiu. Ter só um motivo de vida nada mais é do que ter nenhum.
Olhando para trás vê o quanto todos os natais passou como agora, sozinho. Antes ele só tinha a famosa impressão de pertencimento. Tinha investimentos, família, uma fartura de amigos, mas, quando o dinheiro se foi, eles desapareceram. Agora entende, o sentimento que outrora o invadia pretensiosamente em uma noite festiva é gêmeo do de agora. Experimentou e experimenta, portanto, variados tipos de solidão.
A casa é metáfora de quem ele é. Sabe que deverá manter a determinação da flor que hoje viu crescendo no concreto, a solidão deverá forjar o homem que será no ano novo. Por hora, contenta-se em ser quem é: um Robinson Crusoé pós-moderno, sabendo que sua ilha particular não é rota de nenhum navio.
Ela e ele têm tanto em comum. Ambos ficaram abandonados até se encontrarem. Ele a comprou em um leilão, os herdeiros não a consideraram bonita, então não pagaram os impostos. Aos olhos da prefeitura a casa não servia para abrigar nada, a história dela era simples demais para atrair visitantes.
Raspou o fundo do fundo da poupança para conseguir comprá-la, julgaram-no excêntrico por querer algo que ninguém quis. Ainda mais depois de tudo que aconteceu. Desde cedo, dedicou-se ao trabalho, fez investimentos e, anos depois, em uma jogada mal calculada, viu o esforço de uma vida inteira deixar de ser suficiente. Um dia era rico, no outro não era mais alguém.
Mais cedo, ele limpou o pequeno jardim. Há uma árvore promissora, uma roseira seca, percebeu fascinado uma flor germinando nas ranhuras do muro de concreto. Cuidará de tão frágeis vidas.
Ontem, em um bazar, comprou um sofá tão antigo quanto a casa. Hoje é véspera de natal, ele limpou a sala, arrastou móveis, Da vida antiga, permitiu-se trazer uma árvore de natal e em uma loja de um e noventa e nove comprou enfeites variados e a embelezou modestamente.
Embora haja muito para fazer naquela casa que aos olhos dele é enorme, permite-se da janela observar a imponente cidade. Nos arranha-céus, muitas luzes estão apagadas, provavelmente foram para casa de parentes comemorarem a data festiva. Foram fazer parte do seu presépio pessoal ou, à semelhança dele e sua casa, estão de luzes e alma apagadas. Reflete, sob o brilho fraco que as luzes da árvore propiciam: acende, apaga, claro, escuro...
Horas antes a rua estava só frenesi, os consumidores aproveitavam para comprar as famosas lembrancinhas de natal, cujos presenteados dois dias depois, se muito, abandonarão no fundo do armário; esperando a oportunidade de presentear outros conhecidos, aprisionando-as em um econômico círculo vicioso.
Ele suspira aliviado, achando um ponto positivo na sua aclamada falência: este ano rompeu a tradicional compra das lembrancinhas. Desembaça o vidro com a camisa, consegue ouvir o bate-papo animado dos vizinhos. Esparsos fogos de artifício colorem o céu nublado. Debruçado sobre si mesmo, repassa detalhes da sua história: agora percebe o quanto se iludiu. Ter só um motivo de vida nada mais é do que ter nenhum.
Olhando para trás vê o quanto todos os natais passou como agora, sozinho. Antes ele só tinha a famosa impressão de pertencimento. Tinha investimentos, família, uma fartura de amigos, mas, quando o dinheiro se foi, eles desapareceram. Agora entende, o sentimento que outrora o invadia pretensiosamente em uma noite festiva é gêmeo do de agora. Experimentou e experimenta, portanto, variados tipos de solidão.
A casa é metáfora de quem ele é. Sabe que deverá manter a determinação da flor que hoje viu crescendo no concreto, a solidão deverá forjar o homem que será no ano novo. Por hora, contenta-se em ser quem é: um Robinson Crusoé pós-moderno, sabendo que sua ilha particular não é rota de nenhum navio.
quinta-feira, 28 de agosto de 2014
Noite
Noite
Ele se sente como um personagem das histórias que ouviu na infância, mas não é o herói ou um dos personagens importantes. É quem guarda a chave que permitirá ao protagonista abrir a porta de um forte cujo morador é um severo gigante. Quando a porta abrir, o herói seguirá lutando para, quem sabe, encontrar um tesouro e pagar pela liberdade do seu povo.
Ele não tem chave alguma, mas zela por uma história. Uma bomba destruiu seu lar, outras tornaram sua cidade um quebra-cabeça sem encaixe. Foi retirado desses escombros, recolhido quando nada mais restava além de um fiapo de vida. Nada sobrou da sua família para ser sepultado, ficarão para sempre sob o concreto do que foi um lar. Ele não tem mais ninguém esperando por ele, não há uma casa vazia esperando por ele. Não haverá fotos sobre as cômodas, seus álbuns de retratos diluíram-se no fogo que extinguiu sua pátria.
Contempla a noite na esperança de ser tragado pelo infinito. Não tardará para que conheça outro céu. Atravessará as linhas inimigas almejando encontrar a paz do outro lado da fronteira. Se tornará mais um refugiado de uma zona de guerra, será um número incluso em centenas de outros. Ele foge pela noite retirando parte de sua perseverança da missão autoimposta: dizer para quem quiser ouvi-lo que os civis mortos eram pessoas, indivíduos, pais, mães, filhos e filhas... Não lenha para a fogueira.
Tem a missão de atravessar a noite, está triste e desamparado... É um coração sonhando e lutando no mundo. Estar vivo é um privilégio, mas não o isenta da luta. Ainda é noite, a caminhada é longa, se conseguir chegar haverá um extenso futuro para se recuperar. O que fará com suas cicatrizes? Terá dificuldades para dormir?
O som de bombas, tiros, sirenes, gritos de mulheres e crianças o acompanham a milhares de quilômetros, o acordam nos raros momentos de cochilo e se tornou sua música particular. O caminho a percorrer é longo, a madrugada cada vez mais fria embala sua fome.
Em seus raros momentos de lucidez, questiona a sociedade ocidental e sua busca desenfreada pela felicidade; ele trocaria, se tivesse, toda felicidade comercializada por ai através de bens de consumo, por paz. Tranquilidade para as ruas da sua infância. O sossego noturno cujo único brilho fosse proporcionado pelas poucas estrelas avistadas da sua pequena janela.
Ele olha para trás, não há nada para se despedir, muitas das suas lembranças são partes dos destroços do que um dia recebeu o nome de esperança. Sob a claridade da lua, suas roupas ganham um branco singular, ele é folha carregada pelo vento sem saber aonde chegará. Se for abatido esta noite, o solo será adubado por seu corpo e no futuro, ele sonha quase feliz, pessoas viverão ali sem conhecer a guerra.
Ele se sente como um personagem das histórias que ouviu na infância, mas não é o herói ou um dos personagens importantes. É quem guarda a chave que permitirá ao protagonista abrir a porta de um forte cujo morador é um severo gigante. Quando a porta abrir, o herói seguirá lutando para, quem sabe, encontrar um tesouro e pagar pela liberdade do seu povo.
Ele não tem chave alguma, mas zela por uma história. Uma bomba destruiu seu lar, outras tornaram sua cidade um quebra-cabeça sem encaixe. Foi retirado desses escombros, recolhido quando nada mais restava além de um fiapo de vida. Nada sobrou da sua família para ser sepultado, ficarão para sempre sob o concreto do que foi um lar. Ele não tem mais ninguém esperando por ele, não há uma casa vazia esperando por ele. Não haverá fotos sobre as cômodas, seus álbuns de retratos diluíram-se no fogo que extinguiu sua pátria.
Contempla a noite na esperança de ser tragado pelo infinito. Não tardará para que conheça outro céu. Atravessará as linhas inimigas almejando encontrar a paz do outro lado da fronteira. Se tornará mais um refugiado de uma zona de guerra, será um número incluso em centenas de outros. Ele foge pela noite retirando parte de sua perseverança da missão autoimposta: dizer para quem quiser ouvi-lo que os civis mortos eram pessoas, indivíduos, pais, mães, filhos e filhas... Não lenha para a fogueira.
Tem a missão de atravessar a noite, está triste e desamparado... É um coração sonhando e lutando no mundo. Estar vivo é um privilégio, mas não o isenta da luta. Ainda é noite, a caminhada é longa, se conseguir chegar haverá um extenso futuro para se recuperar. O que fará com suas cicatrizes? Terá dificuldades para dormir?
O som de bombas, tiros, sirenes, gritos de mulheres e crianças o acompanham a milhares de quilômetros, o acordam nos raros momentos de cochilo e se tornou sua música particular. O caminho a percorrer é longo, a madrugada cada vez mais fria embala sua fome.
Em seus raros momentos de lucidez, questiona a sociedade ocidental e sua busca desenfreada pela felicidade; ele trocaria, se tivesse, toda felicidade comercializada por ai através de bens de consumo, por paz. Tranquilidade para as ruas da sua infância. O sossego noturno cujo único brilho fosse proporcionado pelas poucas estrelas avistadas da sua pequena janela.
Ele olha para trás, não há nada para se despedir, muitas das suas lembranças são partes dos destroços do que um dia recebeu o nome de esperança. Sob a claridade da lua, suas roupas ganham um branco singular, ele é folha carregada pelo vento sem saber aonde chegará. Se for abatido esta noite, o solo será adubado por seu corpo e no futuro, ele sonha quase feliz, pessoas viverão ali sem conhecer a guerra.
quinta-feira, 21 de agosto de 2014
Quando os livros foram embora
No espelho, ela sorri para si mesma, não esquece do batom e um pouco de blush. Alinha mais uma vez a blusa, os sapatos confortáveis permitem uma postura adequada. Está bem para idade, frase que há alguns anos a acompanha. Se o tempo não passasse, ela não teria uma vida tão boa.
Vai de táxi, deixa o troco para o motorista e ainda pensa na conversa que teve com os netos pela manhã. Agora, antes de entrar na biblioteca, lugar que é seu trabalho há quase trinta anos, tenta parar seus pensamentos cotidianos porque o momento é solene.
Hoje, não será um dia comum. Não é feriado, porém a biblioteca não abrirá. Também ainda não é o dia da sua aposentadoria, entretanto terá que se despedir. Dirá adeus. Não está especialmente emocionada, até porque a sensibilidade sempre foi parte dela e uma vida longa a ensinou a mantê-la sob rédeas curtas. Não são lágrimas atrapalhando sua percepção, são os livros exigindo mais um pouco de seu cuidado.
Ela passa por muitas estantes, estantes abarrotadas. Ouve o estalar de seus passos reverberarem ad eternum. Um pouco dela irá embora com os livros. Um burocrata qualquer, dono de uma posição e pouco intelecto, decidiu que uma biblioteca cinquentona não precisa de tanto espaço, uma vez que, nas palavras dele: "Já, já, todos os livros serão digitais."
Algumas pessoas subestimam a importância das lembranças, ela conclui resignada. Toca as capas dos livro, romance, ficção científica, suspense... Autores maravilhosos descansam seus sonhos e ideias dentro dos livros. Alguns partiram há tanto tempo, e deixaram um pouco de si. Ao contrário dos cemitérios, o que uma biblioteca guarda é vida, mas há quem os entendam como sinônimos.
Perde a conta de quantas crianças passaram por ali. Quantas delas ignoravam toda novidade tecnológica e deixavam o dia escorrer enquanto usufruiam de viagens no tempo nas páginas amarrotadas de um livro. Quantas vezes, brigou com algumas delas porque o silêncio era difícil.
Outras vezes, foi bibliotecária e mentora, adultos chegavam ali e perguntavam qual livro seria adequado para um leitor iniciante. Quantas pessoas passaram pela biblioteca? Quantas alegrias, ambas, ela e a biblioteca, proporcionaram? Tantas e tantas coisas no mundo são incalculáveis...
Mas ela estima a quantidade de livros que partirá ainda hoje, mais de dez mil. Encaixotados, aguardarão a boa vontade de alguém os dividirem entre as escolas municipais. Deseja que alguém zele por eles, como uma mãe cuidaria dos filhos.
Os livros cujos enredos contam a história da cidade serão transferidos para uma sala nos fundos do palacete onde a prefeitura instalou-se. Como remanescentes, eles carregarão a responsabilidade de testemunhar o legado do que agora é uma nação dizimada. Poucas estantes, o público terá acesso caso se interessem por documentos e jornais antigos. Haverá, inclusive, dois computadores para auxiliar a pesquisa.
Vai de táxi, deixa o troco para o motorista e ainda pensa na conversa que teve com os netos pela manhã. Agora, antes de entrar na biblioteca, lugar que é seu trabalho há quase trinta anos, tenta parar seus pensamentos cotidianos porque o momento é solene.
Hoje, não será um dia comum. Não é feriado, porém a biblioteca não abrirá. Também ainda não é o dia da sua aposentadoria, entretanto terá que se despedir. Dirá adeus. Não está especialmente emocionada, até porque a sensibilidade sempre foi parte dela e uma vida longa a ensinou a mantê-la sob rédeas curtas. Não são lágrimas atrapalhando sua percepção, são os livros exigindo mais um pouco de seu cuidado.
Ela passa por muitas estantes, estantes abarrotadas. Ouve o estalar de seus passos reverberarem ad eternum. Um pouco dela irá embora com os livros. Um burocrata qualquer, dono de uma posição e pouco intelecto, decidiu que uma biblioteca cinquentona não precisa de tanto espaço, uma vez que, nas palavras dele: "Já, já, todos os livros serão digitais."
Algumas pessoas subestimam a importância das lembranças, ela conclui resignada. Toca as capas dos livro, romance, ficção científica, suspense... Autores maravilhosos descansam seus sonhos e ideias dentro dos livros. Alguns partiram há tanto tempo, e deixaram um pouco de si. Ao contrário dos cemitérios, o que uma biblioteca guarda é vida, mas há quem os entendam como sinônimos.
Perde a conta de quantas crianças passaram por ali. Quantas delas ignoravam toda novidade tecnológica e deixavam o dia escorrer enquanto usufruiam de viagens no tempo nas páginas amarrotadas de um livro. Quantas vezes, brigou com algumas delas porque o silêncio era difícil.
Outras vezes, foi bibliotecária e mentora, adultos chegavam ali e perguntavam qual livro seria adequado para um leitor iniciante. Quantas pessoas passaram pela biblioteca? Quantas alegrias, ambas, ela e a biblioteca, proporcionaram? Tantas e tantas coisas no mundo são incalculáveis...
Mas ela estima a quantidade de livros que partirá ainda hoje, mais de dez mil. Encaixotados, aguardarão a boa vontade de alguém os dividirem entre as escolas municipais. Deseja que alguém zele por eles, como uma mãe cuidaria dos filhos.
Os livros cujos enredos contam a história da cidade serão transferidos para uma sala nos fundos do palacete onde a prefeitura instalou-se. Como remanescentes, eles carregarão a responsabilidade de testemunhar o legado do que agora é uma nação dizimada. Poucas estantes, o público terá acesso caso se interessem por documentos e jornais antigos. Haverá, inclusive, dois computadores para auxiliar a pesquisa.
A bibliotecária pensa sobre a tecnologia, a modernização de todas as coisas. Chegará o dia em que ela será substituída por uma máquina também. Androides contarão histórias para nossos netos e bisnetos, conclui mais uma vez resignada.Como as novas gerações aprenderão a amar o que levou anos para ser construído, se hoje tudo é alterado apertando uma tecla?
Já é tarde, os livros já foram. Os burocratas pularam a burocracia na ânsia de ocupar espaço e um dia foi suficiente para guardar todo o tesouro. Agora, tal qual o refugiado que atravessa a madrugada insone, sabendo que seu país não mais estará lá quando se virar para olhá-lo pela última vez; das escadas ela contempla o suntuoso edifício: a alma se foi, o que resta é só um corpo assassinado que não conhecerá justiça.
terça-feira, 12 de agosto de 2014
Sob o verniz
No meu novo nervosismo, tenho a mania de tamborilar meus dedos e faço isso agora, escondido entre a cortina e a parede. As luzes do meu quarto de hotel estão apagadas. Para falar a verdade, não é um quarto, é uma suíte presidencial, com vistas para o mar.
Olho a multidão lá embaixo, algumas horas atrás acenei para eles. Sorri. Mostrei-me feliz nas redes sociais. Interpretei meu papel de celebridade. Amanhã, se der sorte de conseguir dormir, acordarei com uma ressaca federal, soma de cerveja, vinho, whisky, vodca e sei lá o quê.
Olho a praia, vejo as ondas correrem e morrerem na areia. Tenho más ideias. Vestir a minha pele tem sido um exercício extenuante. Apesar de milionário, não estou onde queria estar. Quem disse que dinheiro não traz felicidade, não sabia a verdade de suas palavras, a menos que fosse uma pessoa como eu. Mas não sou uma pessoa, ser pessoa significa dizer ter direitos e deveres, vontades e esperança, eu sou um produto com sobrevida limitada pelo interesse que desperto. A minha popularidade já rendeu muito tempo e levou toda a minha alegria.
Inclusive, eu já passei da idade, qualquer hora vão descobrir que eu e essa mesa de centro temos muito em comum: duas camadas de verniz e por baixo dele, somos madeira vagabunda. Na minha lápide deverão escrever: uma vida que não foi uma vida. Eu era jovem e não sabia que vender minha imagem, me levaria junto. Não ser eu mesmo é um preço muito alto a pagar.
Compus músicas de sucesso, cujo nível intelectual se iguala ao de um mico de circo. Produzi entreterimento, mas sob o verniz, por muito tempo, acalentei a esperança de ser um pianista. Voltaria atrás só pra me avisar que trocar minha música, meu verdadeiro talento, produziria um homem melancólico; cambaleante entre a bebedeira e o sono.
Sou a peça de um quebra-cabeça colocada na caixa errada e agora observo amargurado o jogo montado. Não encaixo em lugar nenhum, nem dentro de mim. De cinco em cinco minutos, meu produtor vem conferir se estou bem, ou se não me matei de tanto beber.
Amanhã o meu jatinho particular sobrevoara a orla marítima. Do céu, verei a praia cheia. Invejo a vida dessas pessoas, elas conseguem desfrutar um dia de verão em família, conseguem ter uma família. Romantizo a rotina deles, provavelmente são assalariados, escolhem qual conta pagarão no mês, sorriem sem nenhum vintém no bolso, e são premiados pela esperança.
Eu me traí. Fui atraído para o sucesso. O sucesso me arruinou, estou nos jornais, na tv, respondo as mesmas perguntas de sempre. As pessoas me ouvem como se eu tivesse algo de interessante a dizer, quando não tenho. As pessoas seguem meu exemplo, vestem o que eu visto, querem estar perto de mim e anestesiam suas vidas me idolatrando. Alguém deveria dizer a elas que sobre a minha cabeça o que paira é uma balão de ilusão. Não há nenhuma estrela guiando meu caminho.
O personagem que sou é superficial e clichê, habitando uma história ruim com diálogos repetidos. Assisto ao meu filme de um lugar privilegiado, estou preso em mim tentando implodir a minha história, antes que eu mesmo imploda.
Não tenho amigos, os que aparecem de vez em quando, vem para usar um pouco do meu suposto sucesso. Eu deveria cortar os pulsos ou fugir para o Alasca. No primeiro caso, estaria nas manchetes amanhã e em qualquer lugar eles me encontrariam. Vou me jogar da sacada, cair sobre o público.
Na última sessão de fotos para mais uma revista de celebridade cujo nome já esqueci, enquanto os flashes embaçavam minha visão e o fotógrafo andava para lá e para cá, eu me sentia sentado na sala de espera da minha vida. Só que meu nome nunca é chamado. Não há uma sala em que deva entrar. Estou congelado, e as rugas que apontam em meu rosto me lembram de que o tempo está passando enquanto perco tempo.
Qual poeta disse que perdeu o bonde e a esperança? Drummond? Preciso de esperança para acreditar que se a porta ficar entreaberta alguma esperança chegará.
Olho a multidão lá embaixo, algumas horas atrás acenei para eles. Sorri. Mostrei-me feliz nas redes sociais. Interpretei meu papel de celebridade. Amanhã, se der sorte de conseguir dormir, acordarei com uma ressaca federal, soma de cerveja, vinho, whisky, vodca e sei lá o quê.
Olho a praia, vejo as ondas correrem e morrerem na areia. Tenho más ideias. Vestir a minha pele tem sido um exercício extenuante. Apesar de milionário, não estou onde queria estar. Quem disse que dinheiro não traz felicidade, não sabia a verdade de suas palavras, a menos que fosse uma pessoa como eu. Mas não sou uma pessoa, ser pessoa significa dizer ter direitos e deveres, vontades e esperança, eu sou um produto com sobrevida limitada pelo interesse que desperto. A minha popularidade já rendeu muito tempo e levou toda a minha alegria.
Inclusive, eu já passei da idade, qualquer hora vão descobrir que eu e essa mesa de centro temos muito em comum: duas camadas de verniz e por baixo dele, somos madeira vagabunda. Na minha lápide deverão escrever: uma vida que não foi uma vida. Eu era jovem e não sabia que vender minha imagem, me levaria junto. Não ser eu mesmo é um preço muito alto a pagar.
Compus músicas de sucesso, cujo nível intelectual se iguala ao de um mico de circo. Produzi entreterimento, mas sob o verniz, por muito tempo, acalentei a esperança de ser um pianista. Voltaria atrás só pra me avisar que trocar minha música, meu verdadeiro talento, produziria um homem melancólico; cambaleante entre a bebedeira e o sono.
Sou a peça de um quebra-cabeça colocada na caixa errada e agora observo amargurado o jogo montado. Não encaixo em lugar nenhum, nem dentro de mim. De cinco em cinco minutos, meu produtor vem conferir se estou bem, ou se não me matei de tanto beber.
Amanhã o meu jatinho particular sobrevoara a orla marítima. Do céu, verei a praia cheia. Invejo a vida dessas pessoas, elas conseguem desfrutar um dia de verão em família, conseguem ter uma família. Romantizo a rotina deles, provavelmente são assalariados, escolhem qual conta pagarão no mês, sorriem sem nenhum vintém no bolso, e são premiados pela esperança.
Eu me traí. Fui atraído para o sucesso. O sucesso me arruinou, estou nos jornais, na tv, respondo as mesmas perguntas de sempre. As pessoas me ouvem como se eu tivesse algo de interessante a dizer, quando não tenho. As pessoas seguem meu exemplo, vestem o que eu visto, querem estar perto de mim e anestesiam suas vidas me idolatrando. Alguém deveria dizer a elas que sobre a minha cabeça o que paira é uma balão de ilusão. Não há nenhuma estrela guiando meu caminho.
O personagem que sou é superficial e clichê, habitando uma história ruim com diálogos repetidos. Assisto ao meu filme de um lugar privilegiado, estou preso em mim tentando implodir a minha história, antes que eu mesmo imploda.
Não tenho amigos, os que aparecem de vez em quando, vem para usar um pouco do meu suposto sucesso. Eu deveria cortar os pulsos ou fugir para o Alasca. No primeiro caso, estaria nas manchetes amanhã e em qualquer lugar eles me encontrariam. Vou me jogar da sacada, cair sobre o público.
Na última sessão de fotos para mais uma revista de celebridade cujo nome já esqueci, enquanto os flashes embaçavam minha visão e o fotógrafo andava para lá e para cá, eu me sentia sentado na sala de espera da minha vida. Só que meu nome nunca é chamado. Não há uma sala em que deva entrar. Estou congelado, e as rugas que apontam em meu rosto me lembram de que o tempo está passando enquanto perco tempo.
Qual poeta disse que perdeu o bonde e a esperança? Drummond? Preciso de esperança para acreditar que se a porta ficar entreaberta alguma esperança chegará.
quinta-feira, 7 de agosto de 2014
Quando o amor se despediu dos móveis
Quando criança fugiu da guerra, não sabendo que das batalhas ninguém escapa. Passaram-se décadas e ela precisa se esforçar para lembrá-las com exatidão. Possui mais passado do que futuro. Tem a certeza de o tempo sozinho não cura nada. Agora, o presente cai de suas mãos, seus dias parecem ter apenas doze horas.
Passou a última noite insone, revirando caixas, baús antigos, abrindo álbuns de retratos. Ela se despede da casa antiga da família. Disseram que não é bom uma idosa viver sozinha em um casebre lúgubre e possivelmente assombrado. Tentou argumentar que fantasmas não existem. Não adiantou. Argumentou que, se há fantasmas, são as memórias da vida vivida de uma geração baralhadora. Não são fantasmas, portanto, são partes de um legado. Não adiantou.
Desistente, não fala mais nada. Abraça o sopro de vida que ainda tem. Por hora, está contente em visitar o passado. Seus olhos repousam sobre uma antiga escrivaninha, relembra os parentes queridos que já se sentaram ali. Vê o pai com a cabeça apoiada nas mãos, vê a avó remexendo papéis e observa a si mesma mais jovem escrevendo cartas.E quanta saudade atrai. É comum ter saudade de dias passados, de pessoas que há muito se foram, ela acalenta, inclusive, saudades da antiga ela. Aquela que um dia foi menos sábia e provavelmente mais feliz. Possuindo tanta história quanto um museu, quantas dela ficaram pelo caminho?
Ela assopra a poeira do relógio de parede sabendo que um pouco de amor se despede dali. Faz o mesmo com a estante, depois é a vez da mesinha de centro. Sabe que o ar, agora, está carregado de amor. Ela o aspira com indizível doçura.
Como largar tantas lembranças? Ela não sabe. Porém, precisa encontrar em si a força necessária para se desprender da casa, do passado, dos móveis... Passou tanto tempo ali, tinha o sonho de se transformar em uma mobília e ver a quantas gerações a casa seria capaz de sobreviver.
Ela é só um voto vencido, suas decisões não mais a pertencem. Assim, essa despedida à força torna tudo mais difícil. Como não lembrar dos natais, das mesas fartas na Páscoa. Lembrar da família reunida é o que mais dói. Se entristece ao perceber que hoje só é memória do que já foi
Quando vierem buscá-la e seus dedos frágeis pela última vez tocarem a maçaneta fria... Manterá sua dignidade ou chorara pela milésima vez? Seus livros preferidos já foram, prometeram substituir seu clássico piano por um menor e mais afinado. A música já importou, foi seu ofício e demonstrava talento. Não faz mais questão da música, mas gosta de lembrar da sua envelhecida genialidade. Mas o piano fica. Vão os álbuns de retrato, as bordadas toalhas de mesa há cinquenta anos na família ficam. Levará o conjunto de chá e as partituras, as poesias do seu pai cheias de saudade da outra pátria, mas os retratos permanecerão no mesmo lugar. Pode levar sua vida, mas a história fica?!
Ainda quer entrar nos quartos da casa, descer até o porão para visitar o passado do passado, coar mais um bule de café na cozinha e deixar-se inebriar pelo aroma. Perceber o tempo girar como uma roleta e a lembrança congelá-lo onde era tão bom estar. Está certa de que o passado não foi perfeito, mas tinha a vantagem de possuir um suposto extenso futuro.
O vento frio de inverno espalha folhas pelo jardim e a faz lembrar da beleza que ele mostrará na primavera. As árvores carregadas de frutas, os pássaros fazendo seus ninhos e construindo vida. E se pergunta quantas estações vencerá. O que eles não entendem é que não podem dividir a herança de alguém vivo. Não é o apego ou o hábito fazendo-a querer ficar em uma casa, é o amor se tornando concreto em tudo que tem ali.
Ela é o último nó de uma corda forte e é dona de uma fé resistente, por isso enxerga, junto com o sol que vai embora de mansinho, uma centelha de esperança apontando o infinito.
Passou a última noite insone, revirando caixas, baús antigos, abrindo álbuns de retratos. Ela se despede da casa antiga da família. Disseram que não é bom uma idosa viver sozinha em um casebre lúgubre e possivelmente assombrado. Tentou argumentar que fantasmas não existem. Não adiantou. Argumentou que, se há fantasmas, são as memórias da vida vivida de uma geração baralhadora. Não são fantasmas, portanto, são partes de um legado. Não adiantou.
Desistente, não fala mais nada. Abraça o sopro de vida que ainda tem. Por hora, está contente em visitar o passado. Seus olhos repousam sobre uma antiga escrivaninha, relembra os parentes queridos que já se sentaram ali. Vê o pai com a cabeça apoiada nas mãos, vê a avó remexendo papéis e observa a si mesma mais jovem escrevendo cartas.E quanta saudade atrai. É comum ter saudade de dias passados, de pessoas que há muito se foram, ela acalenta, inclusive, saudades da antiga ela. Aquela que um dia foi menos sábia e provavelmente mais feliz. Possuindo tanta história quanto um museu, quantas dela ficaram pelo caminho?
Ela assopra a poeira do relógio de parede sabendo que um pouco de amor se despede dali. Faz o mesmo com a estante, depois é a vez da mesinha de centro. Sabe que o ar, agora, está carregado de amor. Ela o aspira com indizível doçura.
Como largar tantas lembranças? Ela não sabe. Porém, precisa encontrar em si a força necessária para se desprender da casa, do passado, dos móveis... Passou tanto tempo ali, tinha o sonho de se transformar em uma mobília e ver a quantas gerações a casa seria capaz de sobreviver.
Ela é só um voto vencido, suas decisões não mais a pertencem. Assim, essa despedida à força torna tudo mais difícil. Como não lembrar dos natais, das mesas fartas na Páscoa. Lembrar da família reunida é o que mais dói. Se entristece ao perceber que hoje só é memória do que já foi
Quando vierem buscá-la e seus dedos frágeis pela última vez tocarem a maçaneta fria... Manterá sua dignidade ou chorara pela milésima vez? Seus livros preferidos já foram, prometeram substituir seu clássico piano por um menor e mais afinado. A música já importou, foi seu ofício e demonstrava talento. Não faz mais questão da música, mas gosta de lembrar da sua envelhecida genialidade. Mas o piano fica. Vão os álbuns de retrato, as bordadas toalhas de mesa há cinquenta anos na família ficam. Levará o conjunto de chá e as partituras, as poesias do seu pai cheias de saudade da outra pátria, mas os retratos permanecerão no mesmo lugar. Pode levar sua vida, mas a história fica?!
Ainda quer entrar nos quartos da casa, descer até o porão para visitar o passado do passado, coar mais um bule de café na cozinha e deixar-se inebriar pelo aroma. Perceber o tempo girar como uma roleta e a lembrança congelá-lo onde era tão bom estar. Está certa de que o passado não foi perfeito, mas tinha a vantagem de possuir um suposto extenso futuro.
O vento frio de inverno espalha folhas pelo jardim e a faz lembrar da beleza que ele mostrará na primavera. As árvores carregadas de frutas, os pássaros fazendo seus ninhos e construindo vida. E se pergunta quantas estações vencerá. O que eles não entendem é que não podem dividir a herança de alguém vivo. Não é o apego ou o hábito fazendo-a querer ficar em uma casa, é o amor se tornando concreto em tudo que tem ali.
Ela é o último nó de uma corda forte e é dona de uma fé resistente, por isso enxerga, junto com o sol que vai embora de mansinho, uma centelha de esperança apontando o infinito.
segunda-feira, 28 de julho de 2014
Ao escritor com carinho
O escritor curva a cabeça sobre o teclado do computador,
embora tenha sensibilidade exigida para exercer, por vezes, seu penoso ofício;
sua imaginação não daria conta de listar tudo que ao mesmo tempo acontece no
mundo.
Há uma pena invisível escrevendo várias histórias, enquanto o escritor sua para dar luz a três ou
quatro miseráveis linhas. Ele retira os olhos da tela, os permite descansar nas
luzes da cidade, mas o céu noturno hoje não o inspira, porque ele está
consternado diante de tão vasto mundo. O escritor percebe o quão superficial é o
seu trabalho, uma vez que criar personagens e contar a história deles não
organiza o caos que por ai existe.
O escritor levanta da sua cadeira , fecha seu notebook, sem
pensar em salvar sua dúzia de linhas escritas nas últimas horas. Passeia
pela casa e não sabe se é inspiração mesmo que procura. Na tv desligada, vê um
homem de meia idade perplexo e talvez um pouco melancólico. Percebe,
abruptamente, como o sol iluminando um quarto escuro, que enquanto conta mais
uma história, há outras mais importantes para serem ditas. Ele é só um escritor de
ficção. Não se aventura escrevendo distopias, gosta de dobrar a realidade e dela retirar universos improváveis. Quantos finais felizes já narrou? Mais de uma centena. E as pessoas
reais, em comparação, já estiveram apenas felizes por alguns minutos?
O escritor coça o queixo, precisa se barbear... Senta-se à
mesa da sala, talvez tenha perdido a
inspiração de vez. Quem mandou querer ser engajado. Quanto ao mundo, além das
notícias dos jornais, precisa de um solitário escritor recontando a dor e a
alegria com palavras bonitas?Ou, como é o caso dele, escritor de narrativas
fantásticas, mero descobridor de sentimentos esquecidos, tem alguma
pertinência colocar uma tela em cima do mundo
e reescrevê-lo com rabiscos diferentes?
Mais do que inspiração, precisa de uma resposta. Vale a pena transpassar a alma com sentimentos emprestados de outrem para tornar seu texto autêntico para um desconhecido? Tudo que sabe é que permitir-se inundar por emoções, muitas que nunca viveu, é o sacrifício a que se presta. Então, pelo leitor nunca conhecido, percorre o vocabulário e encontra a melhor palavra. Uma vez feito seu trabalho, a história só se fará completa quando seu destinatário for cativado por ela.
Pequeno leitor, ainda tropeça em algumas palavras. Jovem leitora abraçada à garupa de um cavaleiro de armadura prateada. Experiente leitor, com o livro aberto no peito, sonha com um mundo fabricado que acabou de ler. Simples professora lê contos em seu tablet e divaga sobre interpretações. Em comum, agradecem ao escritor que suspira e volta ao rascunho de repente motivado.
Mais do que inspiração, precisa de uma resposta. Vale a pena transpassar a alma com sentimentos emprestados de outrem para tornar seu texto autêntico para um desconhecido? Tudo que sabe é que permitir-se inundar por emoções, muitas que nunca viveu, é o sacrifício a que se presta. Então, pelo leitor nunca conhecido, percorre o vocabulário e encontra a melhor palavra. Uma vez feito seu trabalho, a história só se fará completa quando seu destinatário for cativado por ela.
Pequeno leitor, ainda tropeça em algumas palavras. Jovem leitora abraçada à garupa de um cavaleiro de armadura prateada. Experiente leitor, com o livro aberto no peito, sonha com um mundo fabricado que acabou de ler. Simples professora lê contos em seu tablet e divaga sobre interpretações. Em comum, agradecem ao escritor que suspira e volta ao rascunho de repente motivado.
sexta-feira, 25 de julho de 2014
Sem relógio
Para saudade,
pouco tempo é muito tempo. A mágoa quase esquecida no coração precisa sempre de
mais tempo. Para as avós, o tempo cura tudo.
O burocrata finge não saber que
tempo é dinheiro. Nascer o perdão, tempo vezes tempo. Para o escritor achar a
palavra perfeita, sensibilidade e tempo. Nove meses de tempo para uma criança.
Aprender? Dedicação e tempo. Para o amor provar-se forte precisa vencer o tempo. Ter paciência, duas doses de
paciência e um bom tempo. Para sabedoria, cabelos brancos e décadas de tempo. As pirâmides abusaram do tempo. Niemeyer recebeu muito tempo. Crusoé: tempo era sinônimo de solidão. Para os
jovens, todo o tempo do mundo. A tecnologia é mais rápida do que o tempo. O
tempo é senhor da razão, foi-me dito. Quem enfermou, cada hora é igual a menos tempo.
Para quem partiu, eu queria pedir mais
tempo aqui. Michelangelo dedicou muito
tempo à Capela Sistina. A beleza, o tempo leva. Uma prova difícil, nem todo tempo. Algumas vezes, dar tempo ao tempo,
resolve. Para o arrependido, o tempo não
anda para trás. Reveses e muito tempo para conhecer os amigos. Dois jovens conhecidos, pouco mais ou pouco menos de dezoito anos de tempo. A ansiedade vê o tempo coagulado. Com insônia, triste tic tac. Infância, melhor
tempo. Algumas lembranças, nem muito tempo. Férias, muitos passatempos. E o tempo levou... será o nome do filme do nosso tempo. Quando? Pronome interrogativo de tempo. Para sempre, promessa de vencer o tempo. Nunca, promessa de quem acha que não mudará com o tempo. Vento, boa metáfora para tempo. Nenhuma mentira sobrevive ao passar do tempo. Tempo amigo, seja legal. Aos amigos da escola, passou tanto tempo. O ocupado nunca tem tempo. Construção da Muralha da China, ultrapassaram o tempo. Einstein, o tempo é relativo. Eu já tive mais tempo. Érico Veríssimo, O tempo e o vento precisa de bastante tempo. Para Israel e Hamas, mais quanto tempo? Milagre, intervenção divina no tempo. Quintana jogaria fora a casca dourada e inútil das horas. Eu? Eu quero apostar uma corrida com o tempo e vencê-lo de lavada porque tenho um universo sem relógio no peito que pede: "Infinito, para sempre, infinito, para sempre..."
segunda-feira, 14 de julho de 2014
Sobre crescer, amadurecer e envelhecer
Hoje
as crianças crescem rápido, uma criança de dez anos tem um comportamento semelhante a um adolescente de quinze. Quer as mesmas coisas, tem os mesmos
desejos, se veste igual, admira os mesmo artistas e não é raro não estar mais
sob o controle dos pais. Um pré-adolescente há dez anos atrás era uma criança
de doze, agora com essa idade é um adolescente completo, muitas vezes até mesmo
namorando tal qual um jovem de dezoito. Se as crianças soubessem como é difícil
ser adulto, elas almejariam passar bastante tempo brincando antes de se
aventurar a crescer.
É
fácil especular as causas desse crescimento precoce. Talvez parte da culpa seja
dos pais que não se dedicam o suficiente a orientarem seus filhos, não
propiciando a eles o tempo adequado para seu amadurecimento. Alguém objetará
dizendo que a responsabilidade, na verdade, é do mundo, afinal “tudo muda o
tempo todo no mundo” e o século XXI tem outra mentalidade e compará-lo com o
passado é ser saudosista. Outros dirão que a responsabilidade é também da
escola, e essa afirmação não me darei ao trabalho de responder, mas se
respondesse diria que a escola não faz milagres.
Só porque estamos na era da informação e temos
mais tecnologia do que nossos bisavós sonharam, não quer dizer que tudo no
mundo mudou para melhor. As crianças crescerem fora da hora é prejudicial para
elas a médio e longo prazo. Sem procurar culpados, mas na aventura de procurar
as causas, um motivo por que as crianças são levadas a deixarem de ser crianças
é que a mídia (tv, internet etc) sabe que adolescentes podem ser melhores
consumidores do que crianças, uma vez que a criança ainda está (ou deveria
estar) sob o domínio dos pais, enquanto os adolescentes e jovens têm a capacidade
de escolha maior. Por exemplo, uma criança não vai sozinha ao shopping, uma criança acredita que deve esperar até o
natal o Papai Noel trazer seu presente, tente convencer um adolescente a
esperar. As diversões do adolescente exigem dinheiro, uma criança pode ficar
feliz em frequentar o parquinho próximo de casa. É claro que todos as regras têm
sua raras exceções.
Parece que quando a criança não é criança
na época adequada, se transformando em adolescente rápido, é que ela passa a ser
jovem por mais tempo. Sabemos que a sociedade tem uma total rejeição pelo
envelhecimento, haja vista a forma que muitos jovens tratam os idosos nos
ônibus. Em nossa cultura envelhecer é degradante, por isso, cada dia mais as cirurgias
plásticas são procuradas, a toda hora surge um tratamento novo ou um creme
milagroso para evitar as tão temidas rugas. Mas cuidar da aparência não é o
problema, aliás, se cuidar é benéfico. O ponto de tensão se dá quando a loucura
coletiva chega a tal ponto que pessoas de trinta e cinco anos se comportam da
mesma forma que jovens de vinte ou menos. A mesma mídia que insiste no
crescimento precoce da criança, fortifica a ideia de que as pessoas só são
necessárias quando jovens.
Há uma confusão de termos, inclusive. Todos
estão “condenados” a envelhecer ( e muitos querem tirar o máximo da vida até
lá), não se pode dizer o mesmo de amadurecer, os supostos jovens rejeitam o
processo natural da vida. Assim, vemos pais sendo amigos, ao invés de abraçarem
o ônus que ter um filho implica. O problema de pessoas que não amadurecem é que
elas não estão dispostas a assumir responsabilidades. Talvez aqui esteja o
cerne de alguns problemas da sociedade brasileira. Aquele que não amadurece e passa
muito tempo adulando a juventude,
negando o que vê no espelho, é evitar as decisões que só um adulto está
preparado para fazer.
Quem é amadurecido sabe que precisa
entender o que a palavra compromisso significa. Um jovem entende bem a paixão e
é vitima dela, uma adulto sabe que só quem se compromete conhece o amor. Porém
um jovem dirá viver bem apaixonado; alguém que amadureceu prefere alguém com
quem contar. Um jovem têm milhões de
colegas e talvez possa contar com um deles, um adulto tem raros amigos e pode
contar com todos eles. Amadurecer tem seu preço e uma geração eternos de jovens
não está preparada para eles. Assim, nossa sociedade continua agindo como
criança mimada, confunde direito com privilégios, ignora seus deveres com seu
país e com o outro. Porque é jovem e só quer curtir.
Felizmente (infelizmente, outros dirão) a
idade chega para todo mundo e ainda que tarde, esses jovens, mesmo que não
tenham amadurecido, se olharão no espelho. E se viveram uma vida que não foi
construída sob a responsabilidade e o compromisso, não poderão ter construído
nada de significativo. Não consigo pensar em nada que valha a pena ter que não
precise de compromisso para ser construído.
Com ou sem maturidade, quando a idade
chega, é preciso uma história feita de altos e baixos para continuar vivendo
bem, permitindo a cada época ter sua beleza, suas experiências. Uma velhice
ruim é aquela vivida à sombra das saudades do passado. Como diria Nelson
Rodrigues: “Jovens, envelheçam.”
quinta-feira, 10 de julho de 2014
A leitura, a leitura entreterimento e a literatura
Uma das perguntas mais repetidas na sala dos
professores, principalmente entre professores de língua portuguesa, é “Por que
os alunos na infância adoram ler e à medida que crescem odeiam?”. Há duas
respostas para ela, uma fácil e outra bem mais complexa. A fácil é que os
adolescentes, segundo eles mesmos, pensam ter coisas melhores para fazer:
paquerar, navegar pelas redes sociais, mexer no celular a cada segundo que
passa etc. A resposta complexa que obviamente precisa ser cada dia mais complementada
é que os pais não ensinaram/ensinam os filhos a gostarem de ler porque eles mesmos
não se interessam por isso, e a escola sozinha não consegue fazer frente a
tantos outros entreterimentos.
Percebendo que formar alunos leitores
não é fácil, há mais uma pergunta que envolve a leitura e também é tema de debate
entre professores e acadêmicos: “Quanto aos alunos leitores, ler qualquer livro
é benéfico para eles?”. A resposta a essa pergunta é sim. É melhor que o jovem
leia um livro de qualidade duvidável do que não leia nada. Em primeiro lugar, é
preciso definir o que é um livro de qualidade. Para muitos, leitura de
qualidade é Machado de Assis, Luis Fernando Veríssimo, Clarice Lispector e tantos outros. Os textos desses autores
pedem um leitor razoável para maduro e embora adolescente possam se deleitar
com os livros de escritores consagrados,
não dá para negar que para a maioria deles, Machado de Assis é entediante.
Portanto, limitar o que os jovens devem ler e considerar os livros feitos para
adolescentes (que pululam no mercado editorial atualmente) prejudiciais é
equivocado.
Em relação à leitura, principalmente quando
se fala de livros para adolescentes, é preciso fazer um separação.
Primeiramente, para muitos (jovens ou não) a leitura é somente entreterimento,
em outras palavras, é uma forma de diversão, puro deleite. Muitos leitores
enquanto leem um livro não estão preocupados se estão aprendendo alguma coisa,
isto é, eles não escolhem o livro por ser literatura ou porque seu autor é consagrado.
O leitor lê a sinopse, gosta da história e pronto. Lá vai ele feliz da vida com
um livro debaixo do braço.
Um livro pode ser analisado por diversos
aspectos, um deles é a narrativa ou o delineamento das personagens. Pode ser analisado
pelo seu engajamento com determinado assunto, por exemplo, os livros que narram
os horrores da Segunda Guerra Mundial (que são muito queridos pelos alunos).
Cabe dizer também que a escolha de um livro
passa pelo gosto particular de cada leitor. Uns adoram romances
água-com-acúcar; outros, preferem histórias fantásticas etc. O gênero do livro
não interfere na sua qualidade e mesmo com um livro ruim, sob os aspectos da
sua construção, por exemplo, história clichê, personagens planos, final óbvio
etc; o leitor ainda assim pode aprender alguma coisa com ele, uma vez que lendo
pode-se aprender a escrever melhor. Com um livro ruim, um leitor mesmo jovem e/ou iniciante saberá
dizer o que faltou à história para torná-la mais cativante. Com o tempo,
qualquer leitor acaba sabendo o que o leva a se apaixonar por um livro.
Boa parte dos livros não ganhará o Nobel de
literatura e tantos outros nunca alcançaram o status de literatura, mas desses
mesmos livros, muitos marcarão a vida de vários leitores. Muita gente leu o
livro O Pequeno Príncipe e o considera
excelente leitura pela sua singeleza e doçura. Entretanto Exupéry escreveu
outros livros que, se não são tão bons quanto o do principezinho, são de qualidade
inegável, pouca gente sabe da existência deles e isso não é um demérito para o
autor. Ter reconhecimento não é sinal de qualidade inquestionável, portanto a
literatura não é uma ciência exata. O que para grandes autores é uma excelente
obra literária, para leitores (mesmo acadêmicos) pode ser mero jogo linguístico.
Quanto a livros feitos para adolescentes e
jovens (mas lidos por pessoas de variadas faixas etárias) pode-se ressaltar o
excelente A culpa é das estrelas, de John Green, e a fantástica trilogia Jogos
Vorazes, de Susanne Collins. Ambos foram sucesso de vendas, são livros bem
escritos, com história que entretém e ao mesmo tempo reverberam reflexões. No
Brasil, marcaram várias gerações os livros do escritor Pedro Bandeira: A droga
da obediência, A droga do amor e A marca de uma lágrima cujas narrativas têm doçura,
diversão e dramas típicos da adolescência sem ser clichê.
O
leitor ideal é aquele que mantém sua curiosidade em ação e está sempre disposto
a caminhar entre variados estilos, lendo de tudo um pouco. Se for possível
fazer uma escala de valores com esse assunto, um leitor eclético sempre será o
melhor leitor.
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