quinta-feira, 11 de setembro de 2014

Ilhado

   Amassada entre grandes edifícios, há uma casa antiga. Única testemunha da época do Brasil colonial, nela viveram grandes nobres, bailes sem fim foram dados ali. Inclusive, nos tempos da ditadura, pessoas se esconderam no porão que ela ainda tem.
   Ela e ele têm tanto em comum. Ambos ficaram abandonados até se encontrarem. Ele a comprou em um leilão, os herdeiros não a consideraram bonita, então não pagaram os impostos. Aos olhos da prefeitura a casa não servia para abrigar nada, a história dela era simples demais para atrair visitantes.
   Raspou o fundo do fundo da poupança para conseguir comprá-la, julgaram-no excêntrico por querer algo que ninguém quis. Ainda mais depois de tudo que aconteceu. Desde cedo, dedicou-se ao trabalho, fez investimentos e, anos depois, em uma jogada mal calculada, viu o esforço de uma vida inteira deixar de ser suficiente. Um dia era rico, no outro não era mais alguém.
   Mais cedo, ele limpou o pequeno jardim. Há uma árvore promissora, uma roseira seca, percebeu fascinado uma flor germinando nas ranhuras do muro de concreto. Cuidará de tão frágeis vidas.
   Ontem, em um bazar, comprou um sofá tão antigo quanto a casa. Hoje é véspera de natal, ele limpou a sala, arrastou móveis, Da vida antiga, permitiu-se trazer uma árvore de natal e em uma loja de um e noventa e nove comprou enfeites variados e a embelezou modestamente.
   Embora haja muito para fazer naquela casa que aos olhos dele é enorme, permite-se da janela observar a imponente cidade. Nos arranha-céus, muitas luzes estão apagadas, provavelmente foram para casa de parentes comemorarem a data festiva. Foram fazer parte do seu presépio pessoal ou, à semelhança dele e sua casa, estão de luzes e alma apagadas. Reflete, sob o brilho fraco que as luzes da árvore propiciam: acende, apaga, claro, escuro...
   Horas antes a rua estava só frenesi, os consumidores aproveitavam para comprar as famosas lembrancinhas de natal, cujos presenteados dois dias depois, se muito, abandonarão no fundo do armário; esperando a oportunidade de presentear outros conhecidos, aprisionando-as em um econômico círculo vicioso.
    Ele suspira aliviado, achando um ponto positivo na sua aclamada falência: este ano rompeu a tradicional compra das lembrancinhas. Desembaça o vidro com a camisa, consegue ouvir o bate-papo animado dos vizinhos. Esparsos fogos de artifício colorem o céu nublado. Debruçado sobre si mesmo, repassa detalhes da sua história: agora percebe o quanto se iludiu. Ter só um motivo de vida nada mais é do que ter nenhum.
   Olhando para trás vê o quanto todos os natais passou como agora, sozinho. Antes ele só tinha a famosa impressão de pertencimento. Tinha investimentos, família, uma fartura de amigos, mas, quando o dinheiro se foi, eles desapareceram. Agora entende, o sentimento que outrora o invadia pretensiosamente em uma noite festiva é gêmeo do de agora. Experimentou e experimenta, portanto, variados tipos de solidão.
  A casa é metáfora de quem ele é. Sabe que deverá manter a determinação da flor que hoje viu crescendo no concreto, a solidão deverá forjar o homem que será no ano novo. Por hora, contenta-se em ser quem é: um Robinson Crusoé pós-moderno, sabendo que sua ilha particular não é rota de nenhum navio.

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