quinta-feira, 28 de agosto de 2014

Noite

   Noite
 
     Ele se sente como um personagem das histórias que ouviu na infância,  mas não é o herói ou um dos personagens importantes. É quem guarda a chave que permitirá ao protagonista abrir a porta de um forte cujo morador é um severo gigante. Quando a porta abrir, o herói seguirá lutando para, quem sabe, encontrar um tesouro e pagar pela liberdade do seu povo.
    Ele não tem chave alguma, mas zela por uma história. Uma bomba destruiu seu lar, outras tornaram sua cidade um quebra-cabeça sem encaixe. Foi retirado desses escombros, recolhido quando nada mais restava além de um fiapo de vida. Nada sobrou da sua família para ser sepultado, ficarão para sempre sob o concreto do que foi um lar. Ele não tem mais ninguém esperando por ele, não há uma casa vazia esperando por ele. Não haverá fotos sobre as cômodas, seus álbuns de retratos diluíram-se no fogo que extinguiu sua pátria.
    Contempla a noite na esperança de ser tragado pelo infinito. Não tardará para que conheça outro céu. Atravessará as linhas inimigas almejando encontrar a paz do outro lado da fronteira. Se tornará mais um refugiado de uma zona de guerra, será um número incluso em centenas de outros. Ele foge pela noite retirando parte de sua perseverança da missão autoimposta: dizer para quem quiser ouvi-lo que os civis mortos eram pessoas, indivíduos,  pais, mães, filhos e filhas... Não lenha para a fogueira.
    Tem a missão de atravessar a noite, está triste e desamparado... É um coração sonhando e lutando no mundo. Estar vivo é um privilégio, mas não o isenta da luta. Ainda é noite, a caminhada é longa,  se conseguir chegar haverá um extenso futuro para se recuperar. O que fará com suas cicatrizes? Terá dificuldades para dormir?
    O som de bombas, tiros, sirenes, gritos de mulheres e crianças o acompanham a milhares de quilômetros, o acordam nos raros momentos de cochilo e se tornou sua música particular. O caminho a percorrer é longo, a madrugada cada vez mais fria embala sua fome.
    Em seus raros momentos de lucidez, questiona a sociedade ocidental e sua busca desenfreada pela felicidade; ele trocaria, se tivesse, toda felicidade  comercializada por ai através de bens de consumo, por paz. Tranquilidade para as ruas da sua infância. O sossego noturno cujo único brilho fosse proporcionado pelas poucas estrelas avistadas da sua pequena janela.
      Ele olha para trás, não há nada para se despedir, muitas das suas lembranças são partes dos destroços do que um  dia recebeu o nome de esperança. Sob a claridade da lua, suas roupas ganham um branco singular, ele é folha carregada pelo vento sem saber aonde chegará. Se for abatido esta noite, o solo será adubado por seu corpo e no futuro, ele sonha quase feliz, pessoas viverão ali sem conhecer a guerra.

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