Quando criança fugiu da guerra, não sabendo que das batalhas ninguém escapa. Passaram-se décadas e ela precisa se esforçar para lembrá-las com exatidão. Possui mais passado do que futuro. Tem a certeza de o tempo sozinho não cura nada. Agora, o presente cai de suas mãos, seus dias parecem ter apenas doze horas.
Passou a última noite insone, revirando caixas, baús antigos, abrindo álbuns de retratos. Ela se despede da casa antiga da família. Disseram que não é bom uma idosa viver sozinha em um casebre lúgubre e possivelmente assombrado. Tentou argumentar que fantasmas não existem. Não adiantou. Argumentou que, se há fantasmas, são as memórias da vida vivida de uma geração baralhadora. Não são fantasmas, portanto, são partes de um legado. Não adiantou.
Desistente, não fala mais nada. Abraça o sopro de vida que ainda tem. Por hora, está contente em visitar o passado. Seus olhos repousam sobre uma antiga escrivaninha, relembra os parentes queridos que já se sentaram ali. Vê o pai com a cabeça apoiada nas mãos, vê a avó remexendo papéis e observa a si mesma mais jovem escrevendo cartas.E quanta saudade atrai. É comum ter saudade de dias passados, de pessoas que há muito se foram, ela acalenta, inclusive, saudades da antiga ela. Aquela que um dia foi menos sábia e provavelmente mais feliz. Possuindo tanta história quanto um museu, quantas dela ficaram pelo caminho?
Ela assopra a poeira do relógio de parede sabendo que um pouco de amor se despede dali. Faz o mesmo com a estante, depois é a vez da mesinha de centro. Sabe que o ar, agora, está carregado de amor. Ela o aspira com indizível doçura.
Como largar tantas lembranças? Ela não sabe. Porém, precisa encontrar em si a força necessária para se desprender da casa, do passado, dos móveis... Passou tanto tempo ali, tinha o sonho de se transformar em uma mobília e ver a quantas gerações a casa seria capaz de sobreviver.
Ela é só um voto vencido, suas decisões não mais a pertencem. Assim, essa despedida à força torna tudo mais difícil. Como não lembrar dos natais, das mesas fartas na Páscoa. Lembrar da família reunida é o que mais dói. Se entristece ao perceber que hoje só é memória do que já foi
Quando vierem buscá-la e seus dedos frágeis pela última vez tocarem a maçaneta fria... Manterá sua dignidade ou chorara pela milésima vez? Seus livros preferidos já foram, prometeram substituir seu clássico piano por um menor e mais afinado. A música já importou, foi seu ofício e demonstrava talento. Não faz mais questão da música, mas gosta de lembrar da sua envelhecida genialidade. Mas o piano fica. Vão os álbuns de retrato, as bordadas toalhas de mesa há cinquenta anos na família ficam. Levará o conjunto de chá e as partituras, as poesias do seu pai cheias de saudade da outra pátria, mas os retratos permanecerão no mesmo lugar. Pode levar sua vida, mas a história fica?!
Ainda quer entrar nos quartos da casa, descer até o porão para visitar o passado do passado, coar mais um bule de café na cozinha e deixar-se inebriar pelo aroma. Perceber o tempo girar como uma roleta e a lembrança congelá-lo onde era tão bom estar. Está certa de que o passado não foi perfeito, mas tinha a vantagem de possuir um suposto extenso futuro.
O vento frio de inverno espalha folhas pelo jardim e a faz lembrar da beleza que ele mostrará na primavera. As árvores carregadas de frutas, os pássaros fazendo seus ninhos e construindo vida. E se pergunta quantas estações vencerá. O que eles não entendem é que não podem dividir a herança de alguém vivo. Não é o apego ou o hábito fazendo-a querer ficar em uma casa, é o amor se tornando concreto em tudo que tem ali.
Ela é o último nó de uma corda forte e é dona de uma fé resistente, por isso enxerga, junto com o sol que vai embora de mansinho, uma centelha de esperança apontando o infinito.
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