domingo, 21 de setembro de 2014

Ainda


    Com seu vestidinho florido, ela corre para o balanço, sua brincadeira preferida.  A mãe a empurra e ela grita feliz “Mais alto, mais alto”. Ela só vai sozinha até o escorrega, a mãe corre sem fôlego para não deixá-la ir muito longe. A maior dor que já sentiu foi o joelho ralado, quando tentou escalar uma árvore. 
    Os cabelos da menininha reluzem ao sol da manhã e ela ainda não conhece o mundo. Seus pais não a deixam assistir aos jornais. Nunca ouviu falar sobre a fome, a guerra ou a violência, também não compreenderia se ouvisse. Seu maior aborrecimento é não tomar sorvete, se a garganta estiver inflamada.
    Febre já teve, já chorou até dormir. Seus pais dizem não. Ela é só uma criança e seus pezinhos minúsculos contrastam com um mundo enorme para, quem sabe um dia, conhecê-lo. Mas ela janta às seis e ouve historinhas politicamente corretas. Ela não precisa conhecer o mundo. Ainda. Ele pode esperar por ela.
    No intenso tráfego, de mãos dadas com a mãe, ela atravessa as ruas da cidade. Seu vestido cor de rosa se destaca entre o corre-corre dos executivos, o dia cinzento e a fumaça dos veículos. Vai ao dentista arrancar um dente de leite.  À noite, tem pesadelos e seu pai a embala como se outra vez tivesse um ano de idade e pela manhã já esqueceu. Não se preocupa, não é hora  de conhecer o mundo, ainda.
    Um dia, sua infância estará dormindo no álbum de retratos guardado no fundo da gaveta, mas ainda é criança e as notícias do jornal de ontem, de hoje e de amanhã não a abalam. Ela não pensa sobre a inflação, não reparou que na mesa do café da manhã não havia queijo.
    Sabe que o mundo é redondo, se encanta com as estrelas.  Não sabe que outras crianças passam frio e fome, embora tenha perguntado aonde estão os pais dos garotos que vendem balas no sinal. Foi avisada sobre o risco de falar com estranhos, aprendeu a não aceitar nada deles.  Já ficou de castigo no quarto e chorou ao pensar que desagradou o Papai Noel. Teve medo de não ganhar presentes. Não sabe que existe gente trabalhando nos lixões. Ainda não conhece o mundo.
    Morre de medo de pessoas fantasiadas e não acha palhaços engraçados. Gosta de livrarias e aprendeu a ler algumas palavras, até o fim do ano lerá quase tudo, a professora prometeu. Depois do almoço, adormeceu no sofá e foi arrancada do sono pelos trovões da forte chuva que inundou sua cidade. Ela monta um quebra-cabeça no chão enquanto pessoas próximas dali ficaram desalojadas. É uma menininha ainda e não conhece o mundo.
    Já ouviu sua mãe dizendo que não gostaria que ela crescesse, queria sua filhinha para sempre resguardada nos seus braços e deseja que cada minuto tenha a durabilidade de uma hora. Observa pensativa a curva de crescimento da garotinha, mais um centímetro. O mundo fez uma promessa a todas as crianças.
    Ama seus pais e suas bonecas, adora a maioria dos amiguinhos do colégio e desenha sua casa repetidas vezes no mesmo papel, cercada por lápis coloridos. Faz dobradura, pinta o sete. Levada. Saudável. Feliz. Criança. Nada sabe do mundo, ainda. 
    Colhe flores no jardim, faz comidinha com folhas de laranjeira. Abraça sem parar o bebê da vizinha. Usa batom e sandalinhas de dedo. Tem vários sentimentos que ainda não sabe o nome. Nunca teve o coração partido ou as esperanças espezinhadas. Quer ser veterinária igual a Barbie ganhada no aniversário. Não sabe o que é ter um dia difícil. Tem sonhos que o mundo mostrará um dia irrealizáveis, ele não disse isso a ela, ainda.
   Gosta de aniversários e piquenique. Rola no pequeno declive do parque e chega em casa cansada. Dorme preguiçosamente no sofá. Não sabe que o mundo, dia desses, se revelará para ela, por enquanto, ainda pode dormir em paz.

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