Conto de quase Natal
O frio é de julho, mas é antevéspera de Natal. Ele se veste de Papai Noel porque precisa complementar sua irrisória aposentadoria de pintor de paredes. Quem o vê vestido assim, não pode imaginar a história que sua vida conta. Mas hoje ele é mais presente do que passado. Ele é uma das poucas pessoas que não se lamenta, sua vida foi e é simples e ele, na verdade, sempre esteve muito mais atrás de sossego do que de felicidade. Mas ainda não conquistou nenhum dos dois.
A felicidade, por exemplo, só conhece de nome e supõe que seja mera invencionice humana. Quem é totalmente feliz em um mundo em chamas? A alegria, entretanto, ele, eu e você conhecemos intensamente. Quem não vislumbra alguma alegria quando vê essas crianças em frenesi esperando a vez para ter uma foto junto ao Papai Noel num shopping lotado?
Ele encontra alguma paz quando olha as crianças nos olhos e, em silêncio, faz uma oração pela vida delas. Pede proteção. Quase sem saber, renova sua esperança quando as recebe em seus braços cansados, por isso depois de quase doze horas de trabalho, se sente otimista ao voltar para sua quitinete que fica bem longe do centro.
Naquelas roupas quentes e vermelhas, se esforça para não pensar no Natal, se esforça para não pensar na mesa vazia que o espera. Felizmente, o vazio não é de pão, haverá frutas secas, inclusive. Fora a gentileza do porteiro em visitá-lo, provavelmente ele passará a noite natalina com as recordações de natais anteriores.
Ele não reclama, sobrevive calado e monta sua árvore de um metro e meio. Também tem um presépio. Não gosta que datas importantes passem em branco, afinal seu coração, embora fraco e ferido, não parou de bater e isso é motivo para celebração. Esse é o resumo do que pensa.
Sentado naquela grande cadeira, cercado de crianças, finge que são seus netos só por alguns segundos. Repara as pessoas que passam, muitas estão estressadas,outras com um grande sorriso entram e saem das lojas. Talvez, para alguns, o natal seja como uma licença especial para se estar feliz, momento de deixar todos os problemas para o ano vindouro.
Passadas algumas horas, com as costas doloridas, ele subirá três andares e caminhará em um corredor escuro, o apartamento dele é o último à esquerda, mal ventilado e apertado. Ele se arrastará até lá então, seus passos são inaudíveis, ouve a conversa dos vizinhos, uma tv com som alto e risadas de crianças. Tudo nele é silêncio, ele é silencioso. Parece que não quer se acordar, por isso simplesmente vagueia pelos lugares, é mais uma alma enchendo o mundo. Amanhã mais um dia de trabalho. Evita a tv e os jornais. Come pão com mortadela e ouve músicas antigas, permite-se deitar no sofá e deixar-se inebriar pelas melodias.
Ele não sabe o que a palavra vida significa, não mais. Há muito tempo não se sente vivendo, sua cabeça sempre está em outro lugar. Nas conversas, sua atenção está dividida. Ele esta sempre pensando em tantas coisas ao mesmo tempo: a dificuldade do perdão, contas a pagar, uma depressão a vencer. Mas é Natal, ele pensa angustiado. Até a meia noite do dia vinte e quatro, ele tem esperança, depois serão mais de trezentos e sessenta dias aguardando seu milagre de natal. Um dia, em um estábulo, por algumas horas habitou um milagre. Portanto, ele aguarda o dele e sua espera já dura mais de vinte anos.
Ainda vestido de Papai Noel, ele se debate entre o otimismo e a angústia. Aos poucos se desfaz do personagem e no espelho, é observado por um sujeito para lá de cansado. Passa das dez e meia, o shopping fechará às onze horas, e ele segue para sua casa vazia com um turbilhão de sentimentos socando seu peito, de alguma forma acredita que, de tão acostumado com a dor, ela dói menos. Mas está se enganando.
Ele vai até o ponto de ônibus, o fluxo de automóveis ainda é intenso. Os transeuntes se acotovelam nas calçadas. Ele observa o céu. Desce os olhos devagar da imensidão do cosmos tranquilizadora. Eu paro na frente dele. Ele fica assustado. Ambos sorrimos cheios de perdão.
É quase Natal, eu me lembro que deixei milhares de promessas pelo caminho como quem faz uma trilha para não esquecer o caminho de casa. E o homem que minutos antes se vestiu de Papai Noel sonhando com um milagre, recorda que sua saudade tem o meu nome. Ele diz que eu sou o milagre dele. Ele se tornou o meu. A lição que aprendo com os olhos desse homem é que o mais importante na vida não é ser feliz, como muita gente pensa. O mais importante é sentir-se amado, principalmente quando se está infeliz. Sou amada, ansiosamente aguardada. Há mais de dois mil atrás, um milagre veio vestido com a fragilidade de um bebê, e silenciosamente, debaixo do caos do mundo, pequenos milagres acontecem todos os dias:
-Oi, pai.
Nos abraçamos apertado enquanto a rua barulhenta canta uma nova canção de amor. Porque somos pai e filha outra vez, devagarinho o mundo se torna um lugar mais bonito. Para nós, então, já é Natal.
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