Atrás dela a casa está toda arrumada, árvore, presentes, presépio, amigo oculto e o aroma saboroso da boa comida torna o ar inebriante. Ela trouxe pudim, sua única especialidade culinária.
A família está reunida. Aparentemente. O irmão e o cunhado discutem política. Quatro sobrinhos riem para os seus celulares, tiram fotos de si mesmos incansavelmente. Ela já perdeu a conta de quantas foram, mais de dez? Outro sobrinho balança a perna e não tira os olhos do relógio enquanto expira e boceja tediosamente. O tio de quase noventa anos já está no terceiro cochilo.
A família está unida, é o que a foto do natal desse ano testemunhará às gerações futuras, supostamente. Mas o que uma foto diz sobre a verdade? O que ela conta sobre reais sentimentos? Um fotógrafo com um olhar artístico conseguiria capturar com sua câmera que sua irmã e seu irmão não se falam há seis meses? E a tensão palpável sobre a futura herança do tio aparecerá em um dos muitos sorrisos?
Alguém dirá que todas as famílias são assim. Todas as famílias são assim e nunca se abraçam nem mesmo no natal? Todas as famílias são assim, comemoram uma data que para alguns é religiosa, entretanto tem muito a dizer contra essa religião? Ela conclui que se todas as famílias são assim, não há nada de fraternal em estar juntos no natal. Estão, portanto, apenas cumprindo um protocolo.
Ela tem maisnde sessenta anos, sempre foi recepcionista. Atualmente ajuda no consultório de um dos amigos que é dentista. Leva uma vida simples, não solitária, viaja bimestralmente para o campo porque adora a natureza.Seus olhos se detêm no presépio escondidinho sobre um aparador, dividindo espaço com uma profusão de flores artificiais. Ela observa a singela família, está sim unida pelo coração. Pensa, inclusive, na fragilidade do bebê Jesus, ali destituído provisoriamente de sua força e glória. Apenas um bebê. Mais de dois mil anos depois seu nascimento é comemorado em boa parte do mundo. Ainda que sua importância tenha sido diminuida diante das compras, árvores de natal, especiais da tv.
Sentada à mesa com sua família, a recepcionista pensa em sugerir que orem, mas se lembra que a maioria presente não gosta de manifestações religiosas. Ela faz uma oração silenciosa sabendo que seus sobrinhos, se suspeitassem objeto de um pedido, ririam e diriam que a universidade apagou a superstição outrora imbutida em seus intelectos e não precisam de nada disso, Às vezes, ela não sabe qual sobrinho disse o quê, pois todos eles têm os mesmos argumentos, as mesmas piadas, a mesma desconsideração por tudo que simboliza sentimento. Parecem a mesma pessoa habitando corpos diferentes. Provavelmente, as universidades formam máquinas intelectuais, conclui resignada.
A recepcionista, enquanto todos se concentram em seus pratos, volta seus olhos à humildade que o presépio consegue externar. Ela perdeu o bonde da pós-modernidade, entretanto a esperança conseva-se incólume. Quem sabe, um dia, pelo menos os sobrinhos possam rever seus conceitos... Ela cala seu pensamento, pois eles diriam que ela está sendo intolerante. O religioso é sempre o intolerante, ela pensa detestando o termo "religioso" porque é esvaziado de sentido e detestando a palavra intolerância porque está sempre associada a uma pessoa que faz questão de conservar sua fé.
Desta vez é a recepcionista que suspira porque precisou aprender a ficar em silêncio. Ignora o papo que circula na mesa, oscilando entre política, futebol e a novela das nove. O que a salva da solidão grupal é o presépio, a presença daquela singela família, Maria e José cuidam do presente dado à humanidade. Ninguém percebe, os olhos dela estão marejados, sobremaneira cheios da doçura que a cena na manjedoura imprime em sua alma. A recepcionista não está infeliz porque sabe que em lares pobres e ricos, a esperança irradiando do berço de palhas faz companhia a pessoas iguais a ela.
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