domingo, 19 de outubro de 2014

Lírica

    À semelhança da canção,  ela também quer uma casa no campo, se não for pedir muito, que seja vizinha de um rio cuja profundidade fosse suficiente para se ter um barquinho ou uma jangada.
    A casa poderia ser simples, alguns livros e lembranças da família  bastariam somados a um jardim florido e árvore para construir um balanço. Sentada à margem do rio, veria os dias começarem e terminarem, ela não gostaria de receber notícias.
   Em sua bolsa colocaria somente o necessário,  de supérfluo levaria alguma maquiagem porque as noites estreladas campestres merecem tal homenagem.
    Inicialmente,  ela se incomodaria com os mosquitos, mas o que não pode acontecer é este mundo ter a oportunidade de magoá-la mais uma vez. De forma caseira, trataria das picadas dos insetos e no outro dia estaria com sua alma incólume novamente.
   Não lamenta o que deixaria para trás,  violência e medo não fazem falta a ninguém. As notícias das eleições não importariam mais, sem televisão ou internet, viveria em um mundo à parte, sentindo-se em um universo mais promissor e anos-luz mais tolerável.
    Ela divaga sobre sua vida e deseja com toda força se livrar da angústia criada pela labuta diária de se reorganizar diante de uma sociedade que reverência o fugaz. Deixaria, portanto, sua vida sofisticada pela vida monótona do campo. Veria as horas passarem através do fluxo do rio. Maravilhada, entenderia a dimensão da palavra paz.
   Sabe-se romântica, lírica,  criança e boba até,  porém é forte porque mantém a fé. Fé e esperança que nunca depositou neste mundo. Não crerá em mudanças gerais sem mudanças particulares, pensa determinada. Deixará capítulos de sua história como legado para aqueles que iguais a ela cansaram de se sentir fragmentados.
   Pedirá às novas gerações que se  seu coração se quebrar como tantas outras vezes aconteceu, joguem os pedaços ao mar. Levados pela água,  talvez encontrem as antigas garrafas que guardam bilhetes de amor,  juntos - sentimentos e palavras - contarão uma história bonita, nisso ela ainda acredita.
    Por que ela quer o campo e não uma ilha particular? Porque as ilhas foram compradas por milionários,  a exploração imobiliária não poupou nem o discurso politicamente correto e suas mansões donas de licenças ambientais chegaram ao fim do mundo.Quer uma casa no campo a várias horas de qualquer civilização.Ela quer o sossego que ver flores nascerem, morrerem e renascerem proporcionam. Quer, fazendo as contas direitinho, cuidar da sua alma tão delicada.
    Manterá seus valores, expectativas, planos. Levará suas cicatrizes, superará as lembranças e deixará esse mundo anarquista apodrecer longe da doçura que ela tenta construir dentro e fora de si. Terá uma vida quase monástica, ficará velhinha relendo seus livros preferidos. São seus planos, simples tal qual a casinha no campo tão almejada.
     Não é hábil com terra, talvez possa aprender a plantar e colher. De qualquer forma, quer ver o dia passar, ora olhará as estrelas do céu, ora o reflexo delas no rio. Verá também sua imagem mudar tendo a água como espelho, entretanto, lá, num lugarzinho bonitinho que lembra cantigas de infância, esperará a eternidade.
    
 

 

Nenhum comentário:

Postar um comentário