Noite
Ele se sente como um personagem das histórias que ouviu na infância, mas não é o herói ou um dos personagens importantes. É quem guarda a chave que permitirá ao protagonista abrir a porta de um forte cujo morador é um severo gigante. Quando a porta abrir, o herói seguirá lutando para, quem sabe, encontrar um tesouro e pagar pela liberdade do seu povo.
Ele não tem chave alguma, mas zela por uma história. Uma bomba destruiu seu lar, outras tornaram sua cidade um quebra-cabeça sem encaixe. Foi retirado desses escombros, recolhido quando nada mais restava além de um fiapo de vida. Nada sobrou da sua família para ser sepultado, ficarão para sempre sob o concreto do que foi um lar. Ele não tem mais ninguém esperando por ele, não há uma casa vazia esperando por ele. Não haverá fotos sobre as cômodas, seus álbuns de retratos diluíram-se no fogo que extinguiu sua pátria.
Contempla a noite na esperança de ser tragado pelo infinito. Não tardará para que conheça outro céu. Atravessará as linhas inimigas almejando encontrar a paz do outro lado da fronteira. Se tornará mais um refugiado de uma zona de guerra, será um número incluso em centenas de outros. Ele foge pela noite retirando parte de sua perseverança da missão autoimposta: dizer para quem quiser ouvi-lo que os civis mortos eram pessoas, indivíduos, pais, mães, filhos e filhas... Não lenha para a fogueira.
Tem a missão de atravessar a noite, está triste e desamparado... É um coração sonhando e lutando no mundo. Estar vivo é um privilégio, mas não o isenta da luta. Ainda é noite, a caminhada é longa, se conseguir chegar haverá um extenso futuro para se recuperar. O que fará com suas cicatrizes? Terá dificuldades para dormir?
O som de bombas, tiros, sirenes, gritos de mulheres e crianças o acompanham a milhares de quilômetros, o acordam nos raros momentos de cochilo e se tornou sua música particular. O caminho a percorrer é longo, a madrugada cada vez mais fria embala sua fome.
Em seus raros momentos de lucidez, questiona a sociedade ocidental e sua busca desenfreada pela felicidade; ele trocaria, se tivesse, toda felicidade comercializada por ai através de bens de consumo, por paz. Tranquilidade para as ruas da sua infância. O sossego noturno cujo único brilho fosse proporcionado pelas poucas estrelas avistadas da sua pequena janela.
Ele olha para trás, não há nada para se despedir, muitas das suas lembranças são partes dos destroços do que um dia recebeu o nome de esperança. Sob a claridade da lua, suas roupas ganham um branco singular, ele é folha carregada pelo vento sem saber aonde chegará. Se for abatido esta noite, o solo será adubado por seu corpo e no futuro, ele sonha quase feliz, pessoas viverão ali sem conhecer a guerra.
quinta-feira, 28 de agosto de 2014
quinta-feira, 21 de agosto de 2014
Quando os livros foram embora
No espelho, ela sorri para si mesma, não esquece do batom e um pouco de blush. Alinha mais uma vez a blusa, os sapatos confortáveis permitem uma postura adequada. Está bem para idade, frase que há alguns anos a acompanha. Se o tempo não passasse, ela não teria uma vida tão boa.
Vai de táxi, deixa o troco para o motorista e ainda pensa na conversa que teve com os netos pela manhã. Agora, antes de entrar na biblioteca, lugar que é seu trabalho há quase trinta anos, tenta parar seus pensamentos cotidianos porque o momento é solene.
Hoje, não será um dia comum. Não é feriado, porém a biblioteca não abrirá. Também ainda não é o dia da sua aposentadoria, entretanto terá que se despedir. Dirá adeus. Não está especialmente emocionada, até porque a sensibilidade sempre foi parte dela e uma vida longa a ensinou a mantê-la sob rédeas curtas. Não são lágrimas atrapalhando sua percepção, são os livros exigindo mais um pouco de seu cuidado.
Ela passa por muitas estantes, estantes abarrotadas. Ouve o estalar de seus passos reverberarem ad eternum. Um pouco dela irá embora com os livros. Um burocrata qualquer, dono de uma posição e pouco intelecto, decidiu que uma biblioteca cinquentona não precisa de tanto espaço, uma vez que, nas palavras dele: "Já, já, todos os livros serão digitais."
Algumas pessoas subestimam a importância das lembranças, ela conclui resignada. Toca as capas dos livro, romance, ficção científica, suspense... Autores maravilhosos descansam seus sonhos e ideias dentro dos livros. Alguns partiram há tanto tempo, e deixaram um pouco de si. Ao contrário dos cemitérios, o que uma biblioteca guarda é vida, mas há quem os entendam como sinônimos.
Perde a conta de quantas crianças passaram por ali. Quantas delas ignoravam toda novidade tecnológica e deixavam o dia escorrer enquanto usufruiam de viagens no tempo nas páginas amarrotadas de um livro. Quantas vezes, brigou com algumas delas porque o silêncio era difícil.
Outras vezes, foi bibliotecária e mentora, adultos chegavam ali e perguntavam qual livro seria adequado para um leitor iniciante. Quantas pessoas passaram pela biblioteca? Quantas alegrias, ambas, ela e a biblioteca, proporcionaram? Tantas e tantas coisas no mundo são incalculáveis...
Mas ela estima a quantidade de livros que partirá ainda hoje, mais de dez mil. Encaixotados, aguardarão a boa vontade de alguém os dividirem entre as escolas municipais. Deseja que alguém zele por eles, como uma mãe cuidaria dos filhos.
Os livros cujos enredos contam a história da cidade serão transferidos para uma sala nos fundos do palacete onde a prefeitura instalou-se. Como remanescentes, eles carregarão a responsabilidade de testemunhar o legado do que agora é uma nação dizimada. Poucas estantes, o público terá acesso caso se interessem por documentos e jornais antigos. Haverá, inclusive, dois computadores para auxiliar a pesquisa.
Vai de táxi, deixa o troco para o motorista e ainda pensa na conversa que teve com os netos pela manhã. Agora, antes de entrar na biblioteca, lugar que é seu trabalho há quase trinta anos, tenta parar seus pensamentos cotidianos porque o momento é solene.
Hoje, não será um dia comum. Não é feriado, porém a biblioteca não abrirá. Também ainda não é o dia da sua aposentadoria, entretanto terá que se despedir. Dirá adeus. Não está especialmente emocionada, até porque a sensibilidade sempre foi parte dela e uma vida longa a ensinou a mantê-la sob rédeas curtas. Não são lágrimas atrapalhando sua percepção, são os livros exigindo mais um pouco de seu cuidado.
Ela passa por muitas estantes, estantes abarrotadas. Ouve o estalar de seus passos reverberarem ad eternum. Um pouco dela irá embora com os livros. Um burocrata qualquer, dono de uma posição e pouco intelecto, decidiu que uma biblioteca cinquentona não precisa de tanto espaço, uma vez que, nas palavras dele: "Já, já, todos os livros serão digitais."
Algumas pessoas subestimam a importância das lembranças, ela conclui resignada. Toca as capas dos livro, romance, ficção científica, suspense... Autores maravilhosos descansam seus sonhos e ideias dentro dos livros. Alguns partiram há tanto tempo, e deixaram um pouco de si. Ao contrário dos cemitérios, o que uma biblioteca guarda é vida, mas há quem os entendam como sinônimos.
Perde a conta de quantas crianças passaram por ali. Quantas delas ignoravam toda novidade tecnológica e deixavam o dia escorrer enquanto usufruiam de viagens no tempo nas páginas amarrotadas de um livro. Quantas vezes, brigou com algumas delas porque o silêncio era difícil.
Outras vezes, foi bibliotecária e mentora, adultos chegavam ali e perguntavam qual livro seria adequado para um leitor iniciante. Quantas pessoas passaram pela biblioteca? Quantas alegrias, ambas, ela e a biblioteca, proporcionaram? Tantas e tantas coisas no mundo são incalculáveis...
Mas ela estima a quantidade de livros que partirá ainda hoje, mais de dez mil. Encaixotados, aguardarão a boa vontade de alguém os dividirem entre as escolas municipais. Deseja que alguém zele por eles, como uma mãe cuidaria dos filhos.
Os livros cujos enredos contam a história da cidade serão transferidos para uma sala nos fundos do palacete onde a prefeitura instalou-se. Como remanescentes, eles carregarão a responsabilidade de testemunhar o legado do que agora é uma nação dizimada. Poucas estantes, o público terá acesso caso se interessem por documentos e jornais antigos. Haverá, inclusive, dois computadores para auxiliar a pesquisa.
A bibliotecária pensa sobre a tecnologia, a modernização de todas as coisas. Chegará o dia em que ela será substituída por uma máquina também. Androides contarão histórias para nossos netos e bisnetos, conclui mais uma vez resignada.Como as novas gerações aprenderão a amar o que levou anos para ser construído, se hoje tudo é alterado apertando uma tecla?
Já é tarde, os livros já foram. Os burocratas pularam a burocracia na ânsia de ocupar espaço e um dia foi suficiente para guardar todo o tesouro. Agora, tal qual o refugiado que atravessa a madrugada insone, sabendo que seu país não mais estará lá quando se virar para olhá-lo pela última vez; das escadas ela contempla o suntuoso edifício: a alma se foi, o que resta é só um corpo assassinado que não conhecerá justiça.
terça-feira, 12 de agosto de 2014
Sob o verniz
No meu novo nervosismo, tenho a mania de tamborilar meus dedos e faço isso agora, escondido entre a cortina e a parede. As luzes do meu quarto de hotel estão apagadas. Para falar a verdade, não é um quarto, é uma suíte presidencial, com vistas para o mar.
Olho a multidão lá embaixo, algumas horas atrás acenei para eles. Sorri. Mostrei-me feliz nas redes sociais. Interpretei meu papel de celebridade. Amanhã, se der sorte de conseguir dormir, acordarei com uma ressaca federal, soma de cerveja, vinho, whisky, vodca e sei lá o quê.
Olho a praia, vejo as ondas correrem e morrerem na areia. Tenho más ideias. Vestir a minha pele tem sido um exercício extenuante. Apesar de milionário, não estou onde queria estar. Quem disse que dinheiro não traz felicidade, não sabia a verdade de suas palavras, a menos que fosse uma pessoa como eu. Mas não sou uma pessoa, ser pessoa significa dizer ter direitos e deveres, vontades e esperança, eu sou um produto com sobrevida limitada pelo interesse que desperto. A minha popularidade já rendeu muito tempo e levou toda a minha alegria.
Inclusive, eu já passei da idade, qualquer hora vão descobrir que eu e essa mesa de centro temos muito em comum: duas camadas de verniz e por baixo dele, somos madeira vagabunda. Na minha lápide deverão escrever: uma vida que não foi uma vida. Eu era jovem e não sabia que vender minha imagem, me levaria junto. Não ser eu mesmo é um preço muito alto a pagar.
Compus músicas de sucesso, cujo nível intelectual se iguala ao de um mico de circo. Produzi entreterimento, mas sob o verniz, por muito tempo, acalentei a esperança de ser um pianista. Voltaria atrás só pra me avisar que trocar minha música, meu verdadeiro talento, produziria um homem melancólico; cambaleante entre a bebedeira e o sono.
Sou a peça de um quebra-cabeça colocada na caixa errada e agora observo amargurado o jogo montado. Não encaixo em lugar nenhum, nem dentro de mim. De cinco em cinco minutos, meu produtor vem conferir se estou bem, ou se não me matei de tanto beber.
Amanhã o meu jatinho particular sobrevoara a orla marítima. Do céu, verei a praia cheia. Invejo a vida dessas pessoas, elas conseguem desfrutar um dia de verão em família, conseguem ter uma família. Romantizo a rotina deles, provavelmente são assalariados, escolhem qual conta pagarão no mês, sorriem sem nenhum vintém no bolso, e são premiados pela esperança.
Eu me traí. Fui atraído para o sucesso. O sucesso me arruinou, estou nos jornais, na tv, respondo as mesmas perguntas de sempre. As pessoas me ouvem como se eu tivesse algo de interessante a dizer, quando não tenho. As pessoas seguem meu exemplo, vestem o que eu visto, querem estar perto de mim e anestesiam suas vidas me idolatrando. Alguém deveria dizer a elas que sobre a minha cabeça o que paira é uma balão de ilusão. Não há nenhuma estrela guiando meu caminho.
O personagem que sou é superficial e clichê, habitando uma história ruim com diálogos repetidos. Assisto ao meu filme de um lugar privilegiado, estou preso em mim tentando implodir a minha história, antes que eu mesmo imploda.
Não tenho amigos, os que aparecem de vez em quando, vem para usar um pouco do meu suposto sucesso. Eu deveria cortar os pulsos ou fugir para o Alasca. No primeiro caso, estaria nas manchetes amanhã e em qualquer lugar eles me encontrariam. Vou me jogar da sacada, cair sobre o público.
Na última sessão de fotos para mais uma revista de celebridade cujo nome já esqueci, enquanto os flashes embaçavam minha visão e o fotógrafo andava para lá e para cá, eu me sentia sentado na sala de espera da minha vida. Só que meu nome nunca é chamado. Não há uma sala em que deva entrar. Estou congelado, e as rugas que apontam em meu rosto me lembram de que o tempo está passando enquanto perco tempo.
Qual poeta disse que perdeu o bonde e a esperança? Drummond? Preciso de esperança para acreditar que se a porta ficar entreaberta alguma esperança chegará.
Olho a multidão lá embaixo, algumas horas atrás acenei para eles. Sorri. Mostrei-me feliz nas redes sociais. Interpretei meu papel de celebridade. Amanhã, se der sorte de conseguir dormir, acordarei com uma ressaca federal, soma de cerveja, vinho, whisky, vodca e sei lá o quê.
Olho a praia, vejo as ondas correrem e morrerem na areia. Tenho más ideias. Vestir a minha pele tem sido um exercício extenuante. Apesar de milionário, não estou onde queria estar. Quem disse que dinheiro não traz felicidade, não sabia a verdade de suas palavras, a menos que fosse uma pessoa como eu. Mas não sou uma pessoa, ser pessoa significa dizer ter direitos e deveres, vontades e esperança, eu sou um produto com sobrevida limitada pelo interesse que desperto. A minha popularidade já rendeu muito tempo e levou toda a minha alegria.
Inclusive, eu já passei da idade, qualquer hora vão descobrir que eu e essa mesa de centro temos muito em comum: duas camadas de verniz e por baixo dele, somos madeira vagabunda. Na minha lápide deverão escrever: uma vida que não foi uma vida. Eu era jovem e não sabia que vender minha imagem, me levaria junto. Não ser eu mesmo é um preço muito alto a pagar.
Compus músicas de sucesso, cujo nível intelectual se iguala ao de um mico de circo. Produzi entreterimento, mas sob o verniz, por muito tempo, acalentei a esperança de ser um pianista. Voltaria atrás só pra me avisar que trocar minha música, meu verdadeiro talento, produziria um homem melancólico; cambaleante entre a bebedeira e o sono.
Sou a peça de um quebra-cabeça colocada na caixa errada e agora observo amargurado o jogo montado. Não encaixo em lugar nenhum, nem dentro de mim. De cinco em cinco minutos, meu produtor vem conferir se estou bem, ou se não me matei de tanto beber.
Amanhã o meu jatinho particular sobrevoara a orla marítima. Do céu, verei a praia cheia. Invejo a vida dessas pessoas, elas conseguem desfrutar um dia de verão em família, conseguem ter uma família. Romantizo a rotina deles, provavelmente são assalariados, escolhem qual conta pagarão no mês, sorriem sem nenhum vintém no bolso, e são premiados pela esperança.
Eu me traí. Fui atraído para o sucesso. O sucesso me arruinou, estou nos jornais, na tv, respondo as mesmas perguntas de sempre. As pessoas me ouvem como se eu tivesse algo de interessante a dizer, quando não tenho. As pessoas seguem meu exemplo, vestem o que eu visto, querem estar perto de mim e anestesiam suas vidas me idolatrando. Alguém deveria dizer a elas que sobre a minha cabeça o que paira é uma balão de ilusão. Não há nenhuma estrela guiando meu caminho.
O personagem que sou é superficial e clichê, habitando uma história ruim com diálogos repetidos. Assisto ao meu filme de um lugar privilegiado, estou preso em mim tentando implodir a minha história, antes que eu mesmo imploda.
Não tenho amigos, os que aparecem de vez em quando, vem para usar um pouco do meu suposto sucesso. Eu deveria cortar os pulsos ou fugir para o Alasca. No primeiro caso, estaria nas manchetes amanhã e em qualquer lugar eles me encontrariam. Vou me jogar da sacada, cair sobre o público.
Na última sessão de fotos para mais uma revista de celebridade cujo nome já esqueci, enquanto os flashes embaçavam minha visão e o fotógrafo andava para lá e para cá, eu me sentia sentado na sala de espera da minha vida. Só que meu nome nunca é chamado. Não há uma sala em que deva entrar. Estou congelado, e as rugas que apontam em meu rosto me lembram de que o tempo está passando enquanto perco tempo.
Qual poeta disse que perdeu o bonde e a esperança? Drummond? Preciso de esperança para acreditar que se a porta ficar entreaberta alguma esperança chegará.
quinta-feira, 7 de agosto de 2014
Quando o amor se despediu dos móveis
Quando criança fugiu da guerra, não sabendo que das batalhas ninguém escapa. Passaram-se décadas e ela precisa se esforçar para lembrá-las com exatidão. Possui mais passado do que futuro. Tem a certeza de o tempo sozinho não cura nada. Agora, o presente cai de suas mãos, seus dias parecem ter apenas doze horas.
Passou a última noite insone, revirando caixas, baús antigos, abrindo álbuns de retratos. Ela se despede da casa antiga da família. Disseram que não é bom uma idosa viver sozinha em um casebre lúgubre e possivelmente assombrado. Tentou argumentar que fantasmas não existem. Não adiantou. Argumentou que, se há fantasmas, são as memórias da vida vivida de uma geração baralhadora. Não são fantasmas, portanto, são partes de um legado. Não adiantou.
Desistente, não fala mais nada. Abraça o sopro de vida que ainda tem. Por hora, está contente em visitar o passado. Seus olhos repousam sobre uma antiga escrivaninha, relembra os parentes queridos que já se sentaram ali. Vê o pai com a cabeça apoiada nas mãos, vê a avó remexendo papéis e observa a si mesma mais jovem escrevendo cartas.E quanta saudade atrai. É comum ter saudade de dias passados, de pessoas que há muito se foram, ela acalenta, inclusive, saudades da antiga ela. Aquela que um dia foi menos sábia e provavelmente mais feliz. Possuindo tanta história quanto um museu, quantas dela ficaram pelo caminho?
Ela assopra a poeira do relógio de parede sabendo que um pouco de amor se despede dali. Faz o mesmo com a estante, depois é a vez da mesinha de centro. Sabe que o ar, agora, está carregado de amor. Ela o aspira com indizível doçura.
Como largar tantas lembranças? Ela não sabe. Porém, precisa encontrar em si a força necessária para se desprender da casa, do passado, dos móveis... Passou tanto tempo ali, tinha o sonho de se transformar em uma mobília e ver a quantas gerações a casa seria capaz de sobreviver.
Ela é só um voto vencido, suas decisões não mais a pertencem. Assim, essa despedida à força torna tudo mais difícil. Como não lembrar dos natais, das mesas fartas na Páscoa. Lembrar da família reunida é o que mais dói. Se entristece ao perceber que hoje só é memória do que já foi
Quando vierem buscá-la e seus dedos frágeis pela última vez tocarem a maçaneta fria... Manterá sua dignidade ou chorara pela milésima vez? Seus livros preferidos já foram, prometeram substituir seu clássico piano por um menor e mais afinado. A música já importou, foi seu ofício e demonstrava talento. Não faz mais questão da música, mas gosta de lembrar da sua envelhecida genialidade. Mas o piano fica. Vão os álbuns de retrato, as bordadas toalhas de mesa há cinquenta anos na família ficam. Levará o conjunto de chá e as partituras, as poesias do seu pai cheias de saudade da outra pátria, mas os retratos permanecerão no mesmo lugar. Pode levar sua vida, mas a história fica?!
Ainda quer entrar nos quartos da casa, descer até o porão para visitar o passado do passado, coar mais um bule de café na cozinha e deixar-se inebriar pelo aroma. Perceber o tempo girar como uma roleta e a lembrança congelá-lo onde era tão bom estar. Está certa de que o passado não foi perfeito, mas tinha a vantagem de possuir um suposto extenso futuro.
O vento frio de inverno espalha folhas pelo jardim e a faz lembrar da beleza que ele mostrará na primavera. As árvores carregadas de frutas, os pássaros fazendo seus ninhos e construindo vida. E se pergunta quantas estações vencerá. O que eles não entendem é que não podem dividir a herança de alguém vivo. Não é o apego ou o hábito fazendo-a querer ficar em uma casa, é o amor se tornando concreto em tudo que tem ali.
Ela é o último nó de uma corda forte e é dona de uma fé resistente, por isso enxerga, junto com o sol que vai embora de mansinho, uma centelha de esperança apontando o infinito.
Passou a última noite insone, revirando caixas, baús antigos, abrindo álbuns de retratos. Ela se despede da casa antiga da família. Disseram que não é bom uma idosa viver sozinha em um casebre lúgubre e possivelmente assombrado. Tentou argumentar que fantasmas não existem. Não adiantou. Argumentou que, se há fantasmas, são as memórias da vida vivida de uma geração baralhadora. Não são fantasmas, portanto, são partes de um legado. Não adiantou.
Desistente, não fala mais nada. Abraça o sopro de vida que ainda tem. Por hora, está contente em visitar o passado. Seus olhos repousam sobre uma antiga escrivaninha, relembra os parentes queridos que já se sentaram ali. Vê o pai com a cabeça apoiada nas mãos, vê a avó remexendo papéis e observa a si mesma mais jovem escrevendo cartas.E quanta saudade atrai. É comum ter saudade de dias passados, de pessoas que há muito se foram, ela acalenta, inclusive, saudades da antiga ela. Aquela que um dia foi menos sábia e provavelmente mais feliz. Possuindo tanta história quanto um museu, quantas dela ficaram pelo caminho?
Ela assopra a poeira do relógio de parede sabendo que um pouco de amor se despede dali. Faz o mesmo com a estante, depois é a vez da mesinha de centro. Sabe que o ar, agora, está carregado de amor. Ela o aspira com indizível doçura.
Como largar tantas lembranças? Ela não sabe. Porém, precisa encontrar em si a força necessária para se desprender da casa, do passado, dos móveis... Passou tanto tempo ali, tinha o sonho de se transformar em uma mobília e ver a quantas gerações a casa seria capaz de sobreviver.
Ela é só um voto vencido, suas decisões não mais a pertencem. Assim, essa despedida à força torna tudo mais difícil. Como não lembrar dos natais, das mesas fartas na Páscoa. Lembrar da família reunida é o que mais dói. Se entristece ao perceber que hoje só é memória do que já foi
Quando vierem buscá-la e seus dedos frágeis pela última vez tocarem a maçaneta fria... Manterá sua dignidade ou chorara pela milésima vez? Seus livros preferidos já foram, prometeram substituir seu clássico piano por um menor e mais afinado. A música já importou, foi seu ofício e demonstrava talento. Não faz mais questão da música, mas gosta de lembrar da sua envelhecida genialidade. Mas o piano fica. Vão os álbuns de retrato, as bordadas toalhas de mesa há cinquenta anos na família ficam. Levará o conjunto de chá e as partituras, as poesias do seu pai cheias de saudade da outra pátria, mas os retratos permanecerão no mesmo lugar. Pode levar sua vida, mas a história fica?!
Ainda quer entrar nos quartos da casa, descer até o porão para visitar o passado do passado, coar mais um bule de café na cozinha e deixar-se inebriar pelo aroma. Perceber o tempo girar como uma roleta e a lembrança congelá-lo onde era tão bom estar. Está certa de que o passado não foi perfeito, mas tinha a vantagem de possuir um suposto extenso futuro.
O vento frio de inverno espalha folhas pelo jardim e a faz lembrar da beleza que ele mostrará na primavera. As árvores carregadas de frutas, os pássaros fazendo seus ninhos e construindo vida. E se pergunta quantas estações vencerá. O que eles não entendem é que não podem dividir a herança de alguém vivo. Não é o apego ou o hábito fazendo-a querer ficar em uma casa, é o amor se tornando concreto em tudo que tem ali.
Ela é o último nó de uma corda forte e é dona de uma fé resistente, por isso enxerga, junto com o sol que vai embora de mansinho, uma centelha de esperança apontando o infinito.
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