quinta-feira, 25 de setembro de 2014

Flores

     É mais um dia, ele chega ao seu trabalho e contempla silente o imenso jardim que o espera. Tem tanto a fazer, seu ofício não se resume apenas a aparar a grama. Sem saber, ele é quase um artista. Não porque enfeita jardins escolhendo as flores mais bonitas, cortando folhas secas, distribuindo sementes. Mas ele é, ao mesmo tempo que jardineiro, o regente de uma orquestra.
   Claro que obedece às estações, entretanto são suas mãos experientes que, tal qual a mãe embalando um filho, possibilita a vida.  Não é seu sopro que origina o nascimento, ele é humilde o suficiente para saber-se simples intermediário, são os seus cuidados zelando o crescimento que faz dele tão necessário.
   Curvado, escavando a terra para abrigar a promissora semente, ele é tudo agora, menos um homem comum,  abre o caminho para beleza. Talvez sem saber, outras vezes sabendo, o jardineiro cultiva o jardim com indizível doçura.
    Ao vê-lo sozinho, julgam-no solitário, não, a terra sob seus pés em silêncio sobrevive a histórias.  Ela é memória de tantas flores que ali viveram, morreram e renasceram. Ao regar a preciosa semente, ele ouve o canto da beleza.
    Sob as abas de um chapéu de palha, com a meticulosidade de um cirurgião, ele poda aqui e ali os galhos que ressecaram sem saber a metáfora da sua vida que a natureza acaba de contar. Ao dedilhar as sementes, adubá-las, regá-las, ele não espera nenhuma notoriedade, seu trabalho não faz o que hoje se entende por sucesso, na verdade, ele nada espera porque sabe-se mero guardião. A semente pode até mesmo ser semeada pelo vento, mesmo em um solo de concreto, porque há uma autoridade subjacente a qualquer ação humana, e no fundo do peito ele sabe disso.
    Apesar do seu esmero algumas plantas precisam de especial cuidado. Ao perceber que a raiz está enferma, ele corta o frágil galho e o sutura em uma base mais promissora.  Ele não desconfia, não pensa sobre o delicado assunto, entretanto ao enxertar, salva um pouco o mundo do prometido deserto de cimento há anos perpetrado pela construção de arranha-céus.
    É fim de tarde, o solzinho de inverno desaparece sobre a sua cabeça dando lugar a uma fina garoa. O jardineiro ainda tem trabalho a fazer, colhe algumas rosas, seus dedos grossos não reclamam dos espinhos. Talvez ele esteja habituado à beleza, mas nunca será indiferente ao encanto dela.
   As rosas, lírios,  gardênias, margaridas, acácias e variadas espécies pela manhã terão diversos propósitos:  alegrarão uma sala vazia, presentearão o enfermo, homenagearão uma dedicada amiga, estarão na lapela do noivo e a noiva, cheia de expectativas, estará mais bonita também graças a elas e a igreja caprichosamente ornada. Onde as flores estiverem, todos serão lembrados do trabalho de um humilde jardineiro.

domingo, 21 de setembro de 2014

Ainda


    Com seu vestidinho florido, ela corre para o balanço, sua brincadeira preferida.  A mãe a empurra e ela grita feliz “Mais alto, mais alto”. Ela só vai sozinha até o escorrega, a mãe corre sem fôlego para não deixá-la ir muito longe. A maior dor que já sentiu foi o joelho ralado, quando tentou escalar uma árvore. 
    Os cabelos da menininha reluzem ao sol da manhã e ela ainda não conhece o mundo. Seus pais não a deixam assistir aos jornais. Nunca ouviu falar sobre a fome, a guerra ou a violência, também não compreenderia se ouvisse. Seu maior aborrecimento é não tomar sorvete, se a garganta estiver inflamada.
    Febre já teve, já chorou até dormir. Seus pais dizem não. Ela é só uma criança e seus pezinhos minúsculos contrastam com um mundo enorme para, quem sabe um dia, conhecê-lo. Mas ela janta às seis e ouve historinhas politicamente corretas. Ela não precisa conhecer o mundo. Ainda. Ele pode esperar por ela.
    No intenso tráfego, de mãos dadas com a mãe, ela atravessa as ruas da cidade. Seu vestido cor de rosa se destaca entre o corre-corre dos executivos, o dia cinzento e a fumaça dos veículos. Vai ao dentista arrancar um dente de leite.  À noite, tem pesadelos e seu pai a embala como se outra vez tivesse um ano de idade e pela manhã já esqueceu. Não se preocupa, não é hora  de conhecer o mundo, ainda.
    Um dia, sua infância estará dormindo no álbum de retratos guardado no fundo da gaveta, mas ainda é criança e as notícias do jornal de ontem, de hoje e de amanhã não a abalam. Ela não pensa sobre a inflação, não reparou que na mesa do café da manhã não havia queijo.
    Sabe que o mundo é redondo, se encanta com as estrelas.  Não sabe que outras crianças passam frio e fome, embora tenha perguntado aonde estão os pais dos garotos que vendem balas no sinal. Foi avisada sobre o risco de falar com estranhos, aprendeu a não aceitar nada deles.  Já ficou de castigo no quarto e chorou ao pensar que desagradou o Papai Noel. Teve medo de não ganhar presentes. Não sabe que existe gente trabalhando nos lixões. Ainda não conhece o mundo.
    Morre de medo de pessoas fantasiadas e não acha palhaços engraçados. Gosta de livrarias e aprendeu a ler algumas palavras, até o fim do ano lerá quase tudo, a professora prometeu. Depois do almoço, adormeceu no sofá e foi arrancada do sono pelos trovões da forte chuva que inundou sua cidade. Ela monta um quebra-cabeça no chão enquanto pessoas próximas dali ficaram desalojadas. É uma menininha ainda e não conhece o mundo.
    Já ouviu sua mãe dizendo que não gostaria que ela crescesse, queria sua filhinha para sempre resguardada nos seus braços e deseja que cada minuto tenha a durabilidade de uma hora. Observa pensativa a curva de crescimento da garotinha, mais um centímetro. O mundo fez uma promessa a todas as crianças.
    Ama seus pais e suas bonecas, adora a maioria dos amiguinhos do colégio e desenha sua casa repetidas vezes no mesmo papel, cercada por lápis coloridos. Faz dobradura, pinta o sete. Levada. Saudável. Feliz. Criança. Nada sabe do mundo, ainda. 
    Colhe flores no jardim, faz comidinha com folhas de laranjeira. Abraça sem parar o bebê da vizinha. Usa batom e sandalinhas de dedo. Tem vários sentimentos que ainda não sabe o nome. Nunca teve o coração partido ou as esperanças espezinhadas. Quer ser veterinária igual a Barbie ganhada no aniversário. Não sabe o que é ter um dia difícil. Tem sonhos que o mundo mostrará um dia irrealizáveis, ele não disse isso a ela, ainda.
   Gosta de aniversários e piquenique. Rola no pequeno declive do parque e chega em casa cansada. Dorme preguiçosamente no sofá. Não sabe que o mundo, dia desses, se revelará para ela, por enquanto, ainda pode dormir em paz.

quinta-feira, 11 de setembro de 2014

Ilhado

   Amassada entre grandes edifícios, há uma casa antiga. Única testemunha da época do Brasil colonial, nela viveram grandes nobres, bailes sem fim foram dados ali. Inclusive, nos tempos da ditadura, pessoas se esconderam no porão que ela ainda tem.
   Ela e ele têm tanto em comum. Ambos ficaram abandonados até se encontrarem. Ele a comprou em um leilão, os herdeiros não a consideraram bonita, então não pagaram os impostos. Aos olhos da prefeitura a casa não servia para abrigar nada, a história dela era simples demais para atrair visitantes.
   Raspou o fundo do fundo da poupança para conseguir comprá-la, julgaram-no excêntrico por querer algo que ninguém quis. Ainda mais depois de tudo que aconteceu. Desde cedo, dedicou-se ao trabalho, fez investimentos e, anos depois, em uma jogada mal calculada, viu o esforço de uma vida inteira deixar de ser suficiente. Um dia era rico, no outro não era mais alguém.
   Mais cedo, ele limpou o pequeno jardim. Há uma árvore promissora, uma roseira seca, percebeu fascinado uma flor germinando nas ranhuras do muro de concreto. Cuidará de tão frágeis vidas.
   Ontem, em um bazar, comprou um sofá tão antigo quanto a casa. Hoje é véspera de natal, ele limpou a sala, arrastou móveis, Da vida antiga, permitiu-se trazer uma árvore de natal e em uma loja de um e noventa e nove comprou enfeites variados e a embelezou modestamente.
   Embora haja muito para fazer naquela casa que aos olhos dele é enorme, permite-se da janela observar a imponente cidade. Nos arranha-céus, muitas luzes estão apagadas, provavelmente foram para casa de parentes comemorarem a data festiva. Foram fazer parte do seu presépio pessoal ou, à semelhança dele e sua casa, estão de luzes e alma apagadas. Reflete, sob o brilho fraco que as luzes da árvore propiciam: acende, apaga, claro, escuro...
   Horas antes a rua estava só frenesi, os consumidores aproveitavam para comprar as famosas lembrancinhas de natal, cujos presenteados dois dias depois, se muito, abandonarão no fundo do armário; esperando a oportunidade de presentear outros conhecidos, aprisionando-as em um econômico círculo vicioso.
    Ele suspira aliviado, achando um ponto positivo na sua aclamada falência: este ano rompeu a tradicional compra das lembrancinhas. Desembaça o vidro com a camisa, consegue ouvir o bate-papo animado dos vizinhos. Esparsos fogos de artifício colorem o céu nublado. Debruçado sobre si mesmo, repassa detalhes da sua história: agora percebe o quanto se iludiu. Ter só um motivo de vida nada mais é do que ter nenhum.
   Olhando para trás vê o quanto todos os natais passou como agora, sozinho. Antes ele só tinha a famosa impressão de pertencimento. Tinha investimentos, família, uma fartura de amigos, mas, quando o dinheiro se foi, eles desapareceram. Agora entende, o sentimento que outrora o invadia pretensiosamente em uma noite festiva é gêmeo do de agora. Experimentou e experimenta, portanto, variados tipos de solidão.
  A casa é metáfora de quem ele é. Sabe que deverá manter a determinação da flor que hoje viu crescendo no concreto, a solidão deverá forjar o homem que será no ano novo. Por hora, contenta-se em ser quem é: um Robinson Crusoé pós-moderno, sabendo que sua ilha particular não é rota de nenhum navio.