quarta-feira, 23 de setembro de 2015

15 de outubro - Dia do professor e... dia do aluno

 Eu sei o motivo do capitalismo adorar datas comemorativas (tenho certeza de que o Dia do professor não causa frisson nos comerciantes), contudo acredito que dias assim possibilitam, ou podem possibilitar, reflexões. Acho que o Dia do professor, educador, mediador, mestre ou como queiram chamar é uma boa oportunidade para salientar algumas peculiaridades do meu/nosso trabalho.
É bom lembrar que Dia do professor também é dia do aluno, pois os dois ganham folga, se algum político com trauma de escola não inventar de juntar o nosso dia com um feriado "mais importante", igual já aconteceu em anos anteriores.
 Seja como for, ao mencionar a palavra professor é - nas entrelinhas - falar de aluno. Em primeiro lugar porque todo professor já foi aluno, quando o contrário não é verdadeiro, afinal nem todo aluno será professor. Embora na vida, vez ou outra, passeamos pelos dois papéis, é só lembrar das relações humanas cotidianas: o pai ensinando os filhos a dirigir, os filhos o ensinando a mexer no smartphone, a mãe mostrando as suas crianças algumas responsabilidades, os pais descobrindo como precisam aprender a falar "não", a caçula ensinando a mais velha lições de maquiagem, um amigo contando ao outro as maravilhas de um livro...
Assim é a vida, e ser professor não é fácil porque lidamos com os sentimentos alheios e com os nossos. O aluno pode começar odiando a matéria e terminar odiando o professor e por vezes também é o contrário... O professor, por exemplo, pode pensar que a má vontade do aluno é algo contra ele, quando simplesmente é preguiça adolescente.
 Nesse microcosmo que é uma sala de aula, é comum se perder na técnica e na rotina, o que é um perigo para ambas as partes envolvidas.  Particularmente acho impossível o ensinar-aprender sem fazer uso do sentimento. Eu não conseguiria dar um passo sem que ouvisse meus sentimentos cantando para mim. Como ensinar alguma coisa ou aprender quando a alma não se sensibiliza? Por outro lado, é perigoso deixar-se tocar por sentimentos, porque expostos estão vulneráveis, podendo facilmente ser machucadas por aí.
 Em um só dia em minha sala de aula, experimento várias emoções: alegria, tristeza, entusiasmo,  apatia, desesperança... Quantas vezes a minha esperança era pouca para mim e a dividi em trinta partes. Outras vezes, relutei ao questionar o status quo da pós-modernidade  porque sabia que iria entristecer meus alunos, mas o fiz sabendo que  deixá-los caminhar às cegas causaria um dado maior. Foi no dia a dia da escola que descobri que não mudarei o mundo, mas devo ensinar como se fosse possível fazê-lo. Outras vezes me arrependi ao insistir no meu ponto de vista, quando o coração deveria ouvir calado. Também fiz um silêncio respeitoso, querendo falar tudo o que pensava e mais um pouco. Já desabafei com meus alunos, já os vi chorar e chorei com eles. Dei conselhos em situações que não vivi, me perguntei como alguém tão jovem suportava tanto sofrimento. Fiz amigos, testemunhei sonhos, partilhei meus livros. Contei, recontei  minhas histórias preferidas, dividi  minha paixão pelo Orgulho e Preconceito, C.S.Lewis e teologia, Alencar e Clarice Lispector. Conheci a ingratidão, já fui tratada com menos respeito do que merecia, isso também é verdade. Meus alunos sempre dizem que sou calma, mas e porque aprendi a contar até cem, duzentos...
Enquanto ensino, aprendo muito não só sobre português e literatura, aprendo sobre mim mesma e revejo minhas posturas. Ah, meus alunos me ensinam bastante sobre a cultura pop e, em uma conversa informal, aprendi que emprestar os ouvidos é uma grande gentileza.
Meus alunos já foram mais meus amigos do que muita gente que conheço há anos, muitos deles são mais inteligentes do que muitos acadêmicos à solta por aí. Em restrospecto, percebo que foram eles um dos poucos a me darem apoio em muitas situações. Tive problemas e os esqueci na sala de aula. E com muitos alunos não perdi o contato, passam anos e sempre nos falamos.
Também aprendi que não existem alunos difíceis de ensinar, desde que o coração esteja aberto. Mas há alunos impossíveis de ensinar: aqueles que não se sensibilizam, pessoas que são incapazes de olhar além de si mesmas, indivíduos cuja emoção é trancafiada. Por outros lado, aprendi em sala de aula a demonstrar mais meus sentimentos.
Acho que nenhum professor negará o fato de que nossa profissão é bastante solitária, embora estejamos cercados de gente. Talvez porque é inerente ao trabalho ter muita opinião ou porque convivemos pouco uns com os outros e, na correria diária, é difícil construir alguma identificação. A verdade é que houve dias em que esperava encontrar alguma solidariede, mas não consegui acessar a sensibilidade de ninguém. Não vou julgá-los, cada um sabe o que carrega no coração.
Foi entre meus colegas, inclusive, onde conheci pessoas extremamente generosas, donas de uma combinação rara de humildade e conhecimento.
Enfim, parada diante das minhas turmas, olhando-os nos olhos, me vejo anos atrás sentada em cadeiras semelhantes e, em alguma parte dentro de mim, ainda há uma adolescente assustada com o futuro.
Desejo aos meus alunos felicidade, mas não quero que a tenham a qualquer preço,  aceitando, inclusive,  ser felizes passando por cima dos sentimentos alheios. Não, o preço da felicidade não pode ser a alienação, portanto desejo que encontrem a paz em um mundo tão carente dela.
É muito difícil ser professor, mas ser simplesmente humano em um mundo desumano é o maior desafio.




sábado, 12 de setembro de 2015

Sob o legado de Cinquenta Tons de Cinza

  O significado da palavra legado se refere a uma herança deixada por alguém que morreu, entretanto quando se fala da herança do livro Cinquenta tons de cinza, deve-se ter em mente que esta história está longe de morrer. Muito pelo contrário, está em plena saúde e procriando, como prova o novo livro da série, Grey, versão em que o protagonista mostra sua perspectiva dos acontecimentos.
   Não estou aqui para criticar os leitores de literatura erótica (embora eu ache estranho colocar erótico e literatura na mesma linha), há gosto para tudo como provam os livros do Paulo Coelho. Reluto em não deixar duas linhas aqui para alguém me lembrar do livro Lolita e outros do mesmo gênero que deixaram sua marca na literatura e, embora não seja o meu tipo de leitura, devo reconhecer que têm seu mérito. Em um escritor talentoso, a própria escrita, a escolha das palavras, a tecitura e a força narrativa podem salvar um enredo. 
   Não é o caso do Cinquenta Tons e muito menos do segmento de livros que ele trouxe à tona. Infelizmente, acaba sendo assim mesmo, um livro faz sucesso e outros com temática semelhante proliferam no mercado editorial. 
Cada um tem o direito a ler o que quiser, mas não posso deixar de sinalizar alguns aspectos do crescimento desse tipo de livro. Se não me engando foi Oscar Wilde que disse: " Quem lê livros ruins não leva nenhuma vantagem sobre quem não lê livro nenhum." 
   O que sinceramente me ofende é chamar essas histórias de histórias românticas. Elas são tudo, menos românticas. Romântico é o Nicholas Sparks e, acreditem se quiser, é o único que têm salvado as leitoras e leitores do lugar-comum que Cinquenta tons criou. Quem tem uma vaga noção do estilo literário chamado Romantismo, em ascenção nos anos 1800, sabe que a marca dele é a epítome do sentimento, em outras palavras, as histórias românticas têm como objetivo falar sobre amor. Outras características desse estilo literário são/eram amor acima da razão, sacrifício, crença na eternidade do sentimento e da alma etc. 
    Por outro lado, se faz sucesso é porque tem que lê, como disse, não atacarei os leitores de livros eróticos, mas preciso fazer alguns apontamentos, pois sempre fui uma ávida leitora de romances e não consigo enxergar quase nenhum traço dele em Cinquenta Tons e seus filhotes. Particularmente, acredito que o tal Mr. Grey até poderia ser um herói romântico, carregando um passado nada promissor e depois ser salvo por uma mudança em seus sentimentos, porém não é isso que acontece. Na história é Anastácia que topa tudo em nome do amor que diz sentir, a autora deveria ler o livro Senhora para perceber como o amor pode (e faz) tremendas exigências. Me disseram que o protagonista muda no final e acaba se apaixonando de verdade, o que teria algum mérito se dois terços dos livros não tratassem de descrições sexuais. 
Não sei por que as pessoas dessa geração afirmam que  sexo ainda é tabu, não é desde a década de sessenta e caminha a passos largos para o total liberalismo. O que esses livros demonstram é que a sociedade ao quebrar o suposto  tabu do sexo precisou reinventá-lo, adoecê-lo (como Grey demonstra) para que ele tivesse outra vez alguma graça. O problema de se exaltar o sexo como força motriz dos relacionamentos é que, ao fazê-lo, se esvazia o sentimento, o amor fica em segundo, terceiro plano, perdendo seu apelo.
Nas histórias românticas, o personagem principal é salvo e salva através do amor.  É preciso ainda sinalizar que em uma história bem construida os personagens crescem à medida que se lê/relê os livros. É como se fosse uma pessoa de verdade e aos poucos se descobre os nuances da personalidade, os gostos, e o leitor não se cansa de analisá-los porque que são riquíssimos interiormente. Bom escritores capricham ao delinear seus personagens, demoram para desnudá-lo aos olhos do leitor e, ao tecer a história, capricha ao compor os sentimentos. A escrita tem algo de sublime porque toca a emoção de quem a lê, é uma conversa de emoção para emoção. Pelo menos é esse tipo de história que me marca e se torna parte da minha bagagem cultural. 
Clarice Lispector uma vez escreveu "Que não se esmaguem com palavras as entrelinhas", em um bom livro a sutileza é parte da graça, o leitor vai catando ao longo do texto os detalhes, as delicadezas, parando para refletir sobre o que cada acontecimento significa. Em um livro romântico, o amor é o personagem principal, e a sensualidade está exatamente no não dito: um gesto, um olhar, uma nova expressão. Um crítico de cinema fez uma boa observação sobre o filme Cinquenta tons, disse que era a história de sexo menos sensual que ele já viu. Não há nela e em seus pares espaço para o não-dito, para nuances... Talvez haja falta de vontade unida a uma baita falta de talento. Para ganhar dinheiro qualquer coisa serve.
Outro dia li um livro, ignorando o ditado popular "Não julgue um livro pela capa", onde a autora em duas páginas delineou os personagens, depois usou trinta para o encontro sexual dos rapaz e da moça. Alguém vai dizer que sou uma leitora exigente e meu parâmetro é Jane Austen e José de Alencar, não é verdade. Se pegarmos o muito popular Nicholas Sparks, como mencionei mais acima, verá que ele escreve histórias simples, cuja intenção é o entreterimento, mas os livros dele são exemplos de histórias de amor bem contadas, em especial os excelentes Um amor para recordar, Diário de uma paixão e Um porto seguro. Não é esnobismo, sempre li de tudo, até aqueles romancezinhos de banca  e alguns deles estão mais para Sparks do que Cinquenta tons.
Para finalizar, me preocupa a quantidade de livros em que o tema erotismo está em cena, por exemplo, os livros da escritora Julía Quinn. Ela tem uma série de livros que almejam ser romances de época, no entanto são histórias simplesmente sexuais, cujo enredo ela deve ter usado o recorta e cola do word para compor toda a sua série de livros. Outra - que no passado ocupou o posto de Sparks - é Nora Roberts. Essa autora criou quatro personagens ao escrever a sua aclamada série Quarteto de noivas que juntas não têm a expressividade, por exemplo, da Bella da série Crespúculo. Aqui vou fazer um parênteses para lembrá-los de que Cinquenta tons foi inicialmente fanfic do livros da Stephanie Mayer. Eu era fâ do Edward (ultrarromântico) que possuia uma ou duas qualidades como personagem, e a história era bem razoalvelzinha, perdendo, obviamente, para o fascinante A culpa é das estrelas. 
Sinceramente, esses livros eróticos tão em alta na atualidade não têm nenhuma relevância, a não ser sinalizar a decadência do sentimento fortificada pela pós-modernidade e a tentativa fracassada de destruir o bom gosto. 
O que me conforta é saber que todas essas historinhas juntas nunca terão a importância de Orgulho e preconceito, Razão e sensibilidade, Persuasão, Senhora, Dom Casmurro etc. Serão substituídas e esquecidas à medida que são lidas. Os literatos do futuro, se Deus quiser, rirão do mau gosto pós-moderno, negando-se a analisar esse tipo de história. Se eu estiver viva, direi: eu avisei.