Ela caminha pela praia, observando seus pés marcarem a areia fina. É noite, por algum motivo, um sentimento de solenidade a encontra. A brisa marítima, as estrelas desaparecendo no céu e o pulsar de seu coração faz com que se sinta outra vez noiva. É uma noiva pronta para casar-se com o mar que hoje parece mais infinito. Pensa, então, na vida construída. Por baixo das rugas que enfeitam seu rosto, há uma história sendo contada.
Olha o mar, talvez suas emoções, em determinados momentos da vida, o fariam transbordar. As ondas seriam o fluxo da vida, indo e vindo, chegando e partindo, sempre recomeçando. De alguma forma, parada em frente ao mar, com as estrelas encobertas pelas nuvens, ela é um pouco cada uma de nós e ela sabe disso. Nós, mulheres, estamos conectadas pelos sentimentos que carregamos.
Estamos abraçadas as nossas ancestrais, ultrapassando quaisquer árvores genealógicas, qualquer núcleo familiar. Somos Eva. Somos a mulher noiva do mar, refletindo sobre sua vida. Somos a menininha recém-nascida que agora dorme no colo do pai, somos a mãe dela que o parto levou. Fomos aquela mulher em vestidos caros do século XVIII, e a mulher comum plantando rosas ao redor de uma casa simples. Foi o nosso capricho que tornou uma casa um lar, foram os nossos braços que acolheram soldados disfarçados em fiapos de gente, quando não fomos aquelas que lutaram lado a lado com eles na frente de batalha. Somos aquela mulher separada do filho em um cruel senzala.
A mulher de pé encarando o mar é cada uma de nós, nós somos ela. Nossas emoções plurais e ao mesmo tempo singulares, nos despersonaliza, une, divide e acolhe. Contraditória, assim é aquela mulher agora molhando seus pés na água salgada, pensando na menina que foi um dia, na moça sonhadora que guarda em um compartimento da sua alma.
Assim, ela, eu e vocês somos Esther brigando por sua fé e seu povo. Somos Maria Madalena carecendo de perdão e arrependimento. À semelhança de Maria acompanhamos os nossos em suas vias-Crucis. Fomos a inspiração de poetas, a motivação de guerreiros e mudamos o mundo. A nossa voz, força e fragilidade convenceram reis. Somos Rainha Elizabeth, Irmã Dulce e a amorosa Madre Tereza.
Ela tem cinquenta anos e sabe que a idade não é só um número, o vento sacode seus cabelos e ela ignora o frio da noite, ouve a melodia das ondas, inspira, enche de poesia sua alma e precisa rever seu passado para ter força para viver mais meio século. Nós somos essa mulher que a sociedade tantas vezes quis calar porque julgavam sentimento sinônimo de fraqueza. Somos aquela mulher não mais segurando o choro, se orgulhando de suas lágrimas e lutando apesar delas. Somos a mulher de burca, de véu, de saias longas e curtas. Somos descontentes e contentes por mais ou menos cinco quilos. Somos superficiais, modernas, intelectuais, artistas, emotivas. Apenas mulheres amando e odiando o padrão de beleza que nos ditam. Somos Maria da Penha e sua luta por justiça.
Fomos as escritoras subjugadas por um pseudônimo, à época que mulheres não podiam escrever os romances que liam vorazmente. Somos vaidosas representadas na indígena observando-se nas águas limpas de um rio. Somos a menina sonhadora lendo a história de um corajoso cavalheiro e apaixonando-se por ele a cada linha, parando apenas para suspirar. Somos as damas tão docemente descritas por Chico Buarque, Djavan, Castro
Alves... Somos Cecília Meireles, Adélia Prado e Florbela Espanca se desnudando em versos
com e sem rima.
Tão vivida foi a vida dessa mulher, sua vida daria mais que um livro, ela pensa contemplando o infinito que o mar sugere, e o olhar dela vem dos nossos olhos. Ela é porque nós somos a mulher prometida na menina que Anne Frank imortalizou. Somos, inclusive, os sentimentos exorbitantes de muitas mulheres, cuja intensidade as ultrapassaram e os ditaram em livros. Somos autora e personagem. Somos intensamente Clarice Lispector, a triste Macabéa e a complexa G.H. Somos a romântica Jane Austen, a orgulhosa Lizzie e a doce Anna. Escritores tentaram nos desenhar, assim temos a paixão implacável de Aurélia Camargo, o carisma de Capitu e a ingenuidade de Carolina. Somos Julieta, Desdemôna, Dulcineia e Sherazade.
A mulher, à beira do mar contemplando além do horizonte, segura um punhado de areia, que escapa pelos seus dedos e volta para o mesmo lugar. Ela sabe que o tempo tem esse mesmo movimento: escorre, flui, mas não desaparece totalmente, ele estará presente em outras vidas e um pouco dela, imortalizado nos sentimentos de outras mulheres, extrapolará o infinito.
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