domingo, 28 de dezembro de 2014

O protagonista e a leitora

O protagonista e a leitora: quase um conto de fadas

Ela é bem jovem ainda, mas já conhece bastante do mundo. Desde pequena almeja ter uma vida melhor, está cansada de ver sua mãe se arrastar do subúrbio para o centro em uma viagem que quase chega a duas horas, principalmente nas segundas e sextas-feiras. A mãe a aconselha a estudar, única saída para quem não nasceu sob uma régia estrela.
A estudante tem um grande amor pelo conhecimento, não é um fardo, portanto, ter tantas matérias para revisar. É bom também para passar o tempo, uma vez que passa os dias sozinha, esperando a noite chegar para conversar com uma mãe sonolenta.
Hoje, a jovem está ansiosa. Pela manhã, ao visitar a biblioteca da escola, ofereceu-se para ajudar a bibliotecária a arrumar os livros nas parteleiras e organizá-los em ordem alfabética.  Não foi um trabalho difícil,  pois o acervo não é grande. Com a chegada dos livros novos enviados pela secretaria de educação, muitos livros antiquíssimos tiveram que ceder seus lugares:
- Esses não coloque na estante porque vão direto para o lixo.  Só ficaram por tanto tempo porque não tínhamos outros para ocupar o espaço.
-Posso vê-los? - ela perguntou curiosa.
- Você não vai querê-los. Só de encostar neles tenho sintomas de rinite -  a bibliotecária disse.
- Quem sabe tem algo interessante.
- Duvido.
A garota analisou a pilha de livros, realmente quase nada se aproveitava. Mas um livro marrom sem título na capa era o único de aspecto melhor. Pediu a bibliotecária e o levou para casa. Ainda no ônibus começou a lê-lo. Era uma história sobre um valente cavalheiro medieval, que enfrentou mais de dez homens para proteger sua aldeia.
Ela adormeceu sobre o livro, quando sua mãe chegou não teve coragem de acordá-la. Levantou-se apressada, a noite toda sonhou com o protagonista da história do livro velho. Quase perdeu o ponto porque há muito tempo que uma narrativa não prendia tanto sua atenção e um personagem cativava tanto seu carinho.
Mal prestou atenção às aulas, estava agradecida pelo livro ser tão grosso, se não já haveria o terminado. A cada página o personagem  Sir William  mostrava-se mais heroico, mais nobre, ela torcia para que ele conseguisse recuperar seu lugar de príncipe. Um primo déspota usurpou o trono quando o legítimo rei morreu em uma batalha. William, ainda criança, foi levado às pressas para uma aldeia distante, lá foi treinado e preparado para recuperar seu lugar de direito e livrar seu povo da miséria perpretada pelo injusto rei.
A menina chegou em casa, almoçou e novamente pegou o livro e chorou com o protagonista quando ambos viram a aldeia da infância dele se tornar cinzas. Ela teve a impressão de ouvi-lo gritar desesperado. Ela soluçava enquanto William percebia que só sobrou ele e uma história. Sentado sozinho na mata que rodeava o seu palácio há muito tempo roubado pelo primo, ele arquitetada uma forma de reestabelecer seu lugar.
- Você deveria convencer o exército e o povo a se revoltarem contra o falso rei.
- Eu quero vingança antes de ter meu reino.
- Você não é assim. É nobre e corajoso demais para ceder a isso.
William se sobressaltou:
- Quem está falando comigo? Minha consciência?
- Devo estar ficando louca... Ele está falando comigo. Sou a leitora do seu livro.
- Que livro?
Os dois passaram o dia e parte da noite conversando e tentando entender o que estava acontecendo até que ambos dormiram em seus respectivos lugares. No outro dia, a jovem através da história viu Sir William recuperar seu trono seguindo seus conselhos. Eles agora tinham tempo de sobra para conversarem. Ela já havia se apaixonado por outros personagens, mas agora um cavalheiro medieval de um livro antigo dizia- se apaixonado por ela, uma leitora.
Chegou a tal ponto tais sentimentos que tentavam pensar em uma forma de ela entrar no livro ou ele sair dele.
William consultou os homens mais sábios do seu reino, a jovem buscou ajuda no google. Nada. Nada poderia fazê-los se encontrar. Como a vida real pode se mesclar ao fictício?  Agora não se tratava da arte imitando a vida ou da vida imitando a arte, era uma ruptura no tempo, história,  espaço. Era uma história real tornando-se ficção enquanto a ficção se tornava real.
William conversava com sua leitora, quando da torre do seu palácio avistou um ancião, que todos julgavam louco, o príncipe sabia da fama do idoso, entretanto estava desesperado demais para desperdiçar quaisquer oportunidades. O príncipe atravessou os suntuosos corredores do seu castelo, sendo observado pelos retratos das gerações passadas. Um dos seus soldados trouxe o idoso à presença do corajoso cavalheiro e aos olhos atentos da apaixonada leitora. Ambos cheios de espectativa, ouviram esperançosamente o ancião, que disse após William relatar todos os pormenores da história:
- Meu jovem, há muitos anos atrás, ouvi uma história como a sua.
O príncipe e a leitora ficaram surpresos pelo idoso não pensar que ele enlouquecera tal como os homens mais sábios do seu reino tentaram esconder em um sorriso.
- Infelizmente para resolvê-la você terá que fazer uma escolha.
-Eu abro mão do meu reino - o jovem disse sem titubear.
- Não  - disse o ancião levantando a mão para que ele se calasse.
Não há como você sair daqui. Não há como ela entrar.
- Mas o senhor disse que...
- Me deixe terminar, alteza. Está vendo aquelas montanhas quase escondidas pela neblina?
- Sim.
- Atrás delas existe um pêndulo. Dizem que se você ao tocá-lo pode adiantar ou atrasar o tempo em qualquer lugar e espaço.  Não importa se for passado ou presente ou futuro.
- Não faça isso, William - a leitora gritou desesperada.
- Mas - continuou o velho - se você alterar o tempo aqui, não poderá mudá-lo lá. E se alterar lá...
- Já entendi. Se eu volto o tempo, só um de nós esquecerá que nos conhecemos.
Enquanto a leitora suplicava,  William montava em seu cavalo e seguia para as montanhas.
Ela levantou sobressaltada, o despertador tocava alto. Correu para se arrumar porque tinha prova de matemática naquele dia e já ytinha perdido o ônibus.
Os anos se passaram, a menina tornou-se professora universitária ministrando aulas de literatura medieval. Com muito esforço comprou um apartamento no centro da cidade e realizou o sonho de dar uma vida melhor para sua mãe.
A chuva batia fraquinha na janela, enquanto ela relia Jane Austen. Em dias assim,  sentia uma melancolia, como se uma saudade antiga inundasse seu coração. Porém,  deveria estar feliz porque comprara duas estantes para finalmente ter sua biblioteca particular.  Resolveu desencaixotar os livros que trouxera da casa antiga, sobrará espaço para muitos outros, pensa. No meio da pilha, vê um livro velho marrom sem título na capa, folheia-o e se surpreende ao saber que conta a história de um corajoso cavalheiro medieval.



domingo, 21 de dezembro de 2014

Conto de natal

Debruçada na janela, ela observa o tráfego,  ainda há carros passando de lá pra cá e de cá pra lá apesar de faltar menos de meia hora para o dia vinte e cinco de dezembro, a noite de natal. Ela aspira fundo, cheiro de asfalto e calor.  Está uma noite belíssima.
Atrás dela a casa está toda arrumada, árvore,  presentes, presépio, amigo oculto e o aroma saboroso da boa comida torna o ar inebriante. Ela trouxe pudim, sua única especialidade culinária.
  A família está reunida. Aparentemente. O irmão e o cunhado discutem política. Quatro sobrinhos riem para os seus celulares, tiram fotos de si mesmos incansavelmente. Ela já perdeu a conta de quantas foram, mais de dez? Outro sobrinho balança a perna e não tira os olhos do relógio enquanto expira e boceja tediosamente. O tio de quase noventa anos já está no terceiro cochilo.
A família está unida, é o que a foto do natal desse ano testemunhará às gerações futuras, supostamente. Mas o que uma foto diz sobre a verdade? O que ela conta sobre reais sentimentos?  Um fotógrafo com um olhar artístico conseguiria capturar com sua câmera que sua irmã e seu irmão não se falam há seis meses? E a tensão palpável sobre a futura herança do tio aparecerá em um dos muitos sorrisos?
Alguém dirá que todas as famílias são assim. Todas as famílias são assim e nunca se abraçam nem mesmo no natal? Todas as famílias são assim, comemoram uma data que para alguns é religiosa, entretanto tem muito a dizer contra essa religião? Ela conclui que se todas as famílias são assim, não há nada de fraternal em estar juntos no natal. Estão, portanto, apenas cumprindo um protocolo.
Ela tem maisnde sessenta anos, sempre foi recepcionista. Atualmente ajuda no consultório de um dos amigos que é dentista. Leva uma vida simples, não solitária,  viaja bimestralmente para o campo porque adora a natureza.
Seus olhos se detêm no presépio escondidinho sobre um aparador,  dividindo espaço com uma profusão de flores artificiais. Ela observa a singela família,  está sim unida pelo coração.  Pensa, inclusive, na fragilidade do bebê Jesus, ali destituído provisoriamente de sua força e glória.  Apenas um bebê.  Mais de dois mil anos depois seu nascimento é comemorado em boa parte do mundo. Ainda que sua importância tenha sido diminuida diante das compras,  árvores de natal, especiais da tv.
Sentada à mesa com sua família,  a recepcionista pensa em sugerir que orem, mas se lembra que a maioria presente não gosta de manifestações religiosas. Ela faz uma oração silenciosa sabendo que seus sobrinhos, se suspeitassem objeto de um pedido, ririam e diriam que a universidade apagou a superstição outrora  imbutida em seus intelectos e não precisam de nada disso, Às vezes, ela não sabe qual sobrinho disse o quê, pois todos eles têm os mesmos argumentos, as mesmas piadas, a mesma desconsideração por tudo que simboliza sentimento. Parecem a mesma pessoa habitando corpos diferentes. Provavelmente, as universidades formam máquinas intelectuais, conclui resignada.
A recepcionista,  enquanto todos se concentram em seus pratos, volta seus olhos à humildade que o presépio consegue externar. Ela perdeu o bonde da pós-modernidade,  entretanto a esperança conseva-se incólume. Quem sabe, um dia, pelo menos os sobrinhos possam rever seus conceitos... Ela cala seu pensamento, pois eles diriam que ela está sendo intolerante. O religioso é sempre o intolerante, ela pensa detestando o termo "religioso" porque é esvaziado de sentido e detestando a palavra intolerância porque está sempre associada a uma pessoa que faz questão de conservar sua fé.
Desta vez é a recepcionista que suspira porque precisou aprender a ficar em silêncio. Ignora o papo que circula na mesa, oscilando entre política,  futebol e a novela das nove. O que a salva da solidão grupal é o presépio, a presença daquela singela família,  Maria e José cuidam do presente dado à humanidade. Ninguém percebe, os olhos dela estão marejados, sobremaneira cheios da doçura que a cena na manjedoura imprime em sua alma. A recepcionista não está infeliz porque sabe que em lares pobres e ricos, a esperança irradiando do berço de palhas faz companhia a pessoas iguais a ela.